A mais misteriosa das estrelas literárias, Elena Ferrante tem um passado a zelar. Não por manter em sigilo sua verdadeira identidade, esse intolerável segredo num mundo em que a recompensa mais cobiçada é o desfrute da fama. Sob o pseudônimo, a escritora que se tornou "febre" mundial vendendo 15 milhões de exemplares da "Tetralogia Napolitana" preserva uma identidade literária, que alcançou formato tão bem-acabado na fascinante história de Lila e Lenu ao ponto de Ferrante não querer mais se desvencilhar.
É o que sugere o início de A Vida Mentirosa dos Adultos, novo romance da autora publicado no Brasil pela Intríseca. Como em A Amiga Genial, que inaugurou a tetralogia, uma voz feminina confessional relata em primeira pessoa uma fuga, situa a ação em Nápoles e começa a contar uma história de infância. Em tempo: na primeira frase ela anuncia um divórcio, igual a outro livro de Ferrante, Dias de Abandono.
Estamos diante de uma reciclagem, uma imitação, um pastiche? É cedo para julgar. Os fãs dos romances "memoráveis, lúcidos e ferozmente honestos" da autora (a definição é do crítico britânico James Wood) podem se acalmar.
Dos best-sellers, Ferrante conserva em A Vida Mentirosa dos Adultos a passagem da infância para a vida adulta como assunto principal, enquanto impulsionam a trama temas como competição feminina, baixa autoestima, relações familiares e o amor. Mas só leitores desatentos vão confundir a protagonista do novo livro com Lenu ou Lila, mulheres que cresceram no pós-guerra e encarnam a condição feminina no século 20.
A heroína de Ferrante agora tem outros problemas. Ao encontrarmos Giovanna, aos 12 anos, no apartamento de classe média onde vive com os pais, um casal de professores humanistas que lhe deu a melhor das infâncias, seu mundinho desaba ao ouvir o pai dizer que a achava muito feia. A frase não é pronunciada exatamente assim, como vamos descobrir. Só aí fica perceptível que o início da trama está no terreno movediço das interpretações.
No clássico Madame Bovary, do francês Gustave Flaubert, a protagonista Emma também murmura sobre a filha: "Que coisa estranha, como esta criança é feia!". Ferrante confessou em artigo de 2003, depois publicado em Frantumaglia (Intrínseca, 2017), o quanto achava a frase impactante e queria colocá-la em um livro seu para tentar compreender aquelas palavras. Em Flaubert, elas são reflexo do estado de espírito de Emma, não um julgamento sobre aparência física. Seria diferente com Ferrante?
Se bem que o pai de Giovanna diz algo que para a menina soa mais devastador: ela estava ficando parecida com a tia Vittoria. Mas quem é Vittoria? Giovanna não a conhece, o pai cortou laços com a irmã que mora em um bairro pobre de Nápoles, mas desde sempre ouviu que na tia "feiura e maldade coincidiam perfeitamente". Giovanna, é inevitável, vai atrás dessa figura misteriosa e desce até a parte baixa da cidade, onde conhece a pobreza, a amargura e a sordidez (e se sente confortável).
Então o livro se aproxima de outro Flaubert, A Educação Sentimental. Giovanna se desilude com os modelos adultos e se revolta ao perceber que todos mentem. Prescreve a mentira como autodefesa, para competir com as amigas e corrigir a própria vida, como se amadurecer fosse aprender a fingir. Mas o amadurecimento só virá quando ela vê que o que sente é geralmente transitório, como a história de uma pulseira que no livro muda continuamente.
Enquanto apresenta o mundo de Giovanna, Ferrante deixa no caminho uma única pista sobre a época da história. A data de nascimento da garota revela que estamos nos anos 1990, e ajuda a decifrar os rumos que ela decide seguir. A vida sexual de Giovanna, por exemplo, só está sujeita a seus próprios desejos. Há um jovem intelectual chamado Roberto, que a fascina e substitui a desbocada tia Vittoria no rol de suas obsessões, mas nem este homem admirável fará Giovanna perder a consciência, que ela adquire ao longo da história, para impedir que homens venham a dominá-la.
Outras figuras femininas, pouco ou bem mais velhas, não têm a mesma capacidade e orbitam tragicamente em torno de homens. A tia Vittoria idolatra o único amante que teve, a mãe de Giovanna não consegue superar o divórcio e Giuliana, uma afilhada de Vittoria, quer casar com Roberto para deixar a vida na periferia e a opressão familiar.
Aos 16 anos, quando o livro chega ao fim, a millennial Giovanna já é um ser bem diferente desses. Sua última frase é um pacto com uma amiga: serem "adultas como jamais havia acontecido com nenhuma outra mulher". Soa como uma promessa de continuação, mas não custa lembrar que Ferrante é uma máquina de inverter expectativas.
Anos atrás, quando o jornalista italiano Claudio Gatti apontou a tradutora Anita Raja, casada com o escritor Domenico Starnone, como a Elena Ferrante real, pareceu que o mistério chegaria ao fim. Alguns fãs pediram que ela nunca revelasse sua identidade. Hoje está claro como a questão do pseudônimo se tornou essencial à voz literária da autora. Ferrante não ter um rosto lhe propicia ser o rosto de todas as mulheres. E isso acontecer a uma escritora que, sem vampiros, bruxos, zumbis ou dragões, obtém sucesso comercial com uma literatura adulta, profunda e intensa, é uma alegria para todos os leitores.
Uma versão desse texto foi publicada no Valor
Comente: