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30.12.19   Páginas assombradas

A Morte e o Meteoro: catástrofe ambiental e vaidade intelectual são causas de extinção



"Foi o primeiro caso da história das colonizações em que um povo ameríndio inteiro, os cinquenta kaajapukugi remanescentes, pediu asilo político em outro país". A síntese do narrador de A Morte e o Meteoro, o novo e oportuno romance de Joca Reiners Terron, reflete o desejo de explorar o desconhecido.

Estamos em terreno distópico, a cada dia menos distante do noticiário. O enredo tem ponto de partida na suprema catástrofe ambiental: a destruição da Amazônia, reduzida a uma paisagem desértica com só algumas dezenas de hectares de árvores que logo se tornarão esculturas de cálcio devido ao calor e à escassez das chuvas.

O colapso amazônico é mais trágico para os kaajapukugi, povo que vive isolado à beira da extinção. Sem a floresta, perderam suas fontes de subsistência, plantas medicinais e o timbó que atordoa os peixes na pescaria (a propósito, os rios secaram). O besouro com que preparavam o tinsáanhán, a substância sagrada da tribo, também foi extinto. Sem o inseto, perderão acesso até mesmo a seus deuses e seu mundo espiritual.

Não está fácil para os kaajapukugi. Sofrem ameaças do Estado e de seus "agentes de extermínio", entre eles garimpeiros, madeireiros e latifundiários. Soa familiar? Sua última esperança recai sobre o velho indigenista Boaventura, um alegórico ativista humanitário com reputação de maior especialista na tribo e seu único elo com o mundo exterior. A pedido dos índios, ele é nomeado por uma ONG de auxílio a refugiados para encontrar o novo lar dos kaajapukugi.

Quem descreve o fim do paraíso indígena e a busca de Boaventura é um antropólogo mexicano frustrado com o trabalho burocrático na reserva da serra de Huautla, em Oaxaca. A região foi escolhida após o México aceitar o pedido de asilo dos índios brasileiros. O mexicano recebe a missão de acolher os kaajapukugi. Solteirão e sem perspectiva de casar ou ter filhos, enfrenta um surto de solidão após a morte dos pais — um personagem, portanto, à procura de sentido para a própria existência.

A misteriosa morte de Boaventura, na iminência do embarque dos índios, põe nas mãos do antropólogo o destino dos kaajapukugi. Ele abraça a tarefa enquanto busca desvendar o óbito do indigenista e a presença de um estranho entre os hóspedes da Amazônia.

O ponto de virada está em um vídeo-testamento enviado por Boaventura antes de morrer. Em um diário de suas grandes aventuras na selva, revelações macabras surgem quando o mexicano reproduz o relato do morto, em um jogo de espelhos narrativo no qual as duas vozes se sobrepõem e se completam.

Boaventura faz uma confissão. Diz ter cometido um "crime de lesa-humanidade". Movido pelo desejo de conhecer rituais e crenças kaajapukugi, uma manifestação de vaidade intelectual em um jovem aventureiro com sede de fama, praticou atos brutais em seu contato inicial com os índios. Aos poucos, revela que dedicou a carreira a reparar essas ações, que décadas depois teriam consequências para o desaparecimento da tribo.

Uma subtrama acontece em paralelo: uma missão espacial chinesa viaja a Marte. Ela dá sobrevida ao quebra-cabeça, que nunca ficará completo.

Joca Reiners Terron ama o mistério, o que em parte explica sua restrição à história linear, à voz narrativa unitária e à etiqueta realista. Nos seus primeiros livros, isso resultou em obras bastante fragmentárias. No extremo, em metaliteratura que só tinha graça para o leitor com conhecimentos prévios ou no desfile de esquisitices de filme B, em que a busca do incomum se confundia com a coleta de personagens e enredos divertidamente bizarros, mas superficiais.

Um grande trunfo de A Morte e o Meteoro é limitar variações formais e usá-las a serviço da história, o que valoriza o poder de imaginação do escritor. Na esteira do excepcional "Noite Dentro da Noite", seu romance anterior, há experimentação, não experimentalismo.

O outro trunfo é expor que nas boas intenções humanitárias há também interesses pessoais. E em maior ou menor grau, a mínima interferência corrompe uma civilização e pode resultar na sua extinção.

O apocalipse não espreita só os índios. A Morte e o Meteoro nos conduz ao fim do mundo, mas ao menos na crença kaajapukugi, não ao fim de tudo. O último capítulo transcreve um diálogo de Alphaville, a ficção científica noir do diretor Jean-Luc Godard, na qual o agente americano Lemmy Caution é enviado a uma cidade nos confins do espaço para salvá-la do computador Alpha 60. Resta esperar que agora os chineses de Marte salvem a espécie humana.

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Um blogue não é mais uma blague. De agora em diante é uma página assombrada, uma ilusão encontrada, um roteiro de um filme para sempre, um guia útil para uma vida fútil, uma antologia ou mitologia pessoal, uma miscelânea pouco original, uma autoentrevista, um manual passo-a-passo de uma dança imóvel, um mistério a mais no mundo, um papel avulso, uma estranha obsessão, um crime sem castigo, uma adivinhação, um pássaro de uma perna só que foi ciscar e caiu, um suspiro, um minuto de silêncio.

QUEM FAZ

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Vitor Pamplona nasceu em Barreiras, interior da Bahia, em 1981. Em Salvador, fez faculdade de direito, mas formou-se em jornalismo. Vive em São Paulo.

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