Os rumos atuais da República inquietam Milton Hatoum. Depois de mais de uma década entrelaçando memórias pessoais e fabulação reflexiva na escrita da trilogia “O Lugar Mais Sombrio”, que atravessa o período da ditadura (1964-1985) e cruza os destinos de jovens sonhadores com a repressão, o escritor amazonense de 67 anos aperta a vista ao ajeitar os óculos. Abre os olhos e enxerga vestígios da história. “Na literatura, o passado renasce no momento em que fala do nosso tempo. Quando está em sintonia com questões atuais, o passado adquire força”, diz.
Em “Pontos de Fuga - O Lugar Mais Sombrio Vol. 2” (Companhia das Letras, 240 págs., R$ 49,90), república pode ser o o país ou um pequeno sobrado na rua Fidalga, na Vila Madalena, em São Paulo. A comunidade de estudantes da USP é o destino do jovem Martim depois de deixar Brasília no desfecho do primeiro livro da série, “A Noite da Espera” (2017). Nela o autor constrói o ambiente metafórico de embates e paradoxos da vida nacional.
“Numa comunidade, você tem que olhar para o outro e respeitar as opiniões divergentes, como numa democracia”, afirma Hatoum. “Tem que conviver com pensamentos divergentes. Mas não os fascistas.” No livro há um personagem que “ri de assassinatos”, como um “extremista de direita”, e acaba expulso da casa por descumprir regras de convívio.
Nesse microcosmo cercado por turbulências da ditadura, com relatos em forma de diários e cartas dos moradores da república, Milton Hatoum elabora um painel que reflete a época e a vida interior dos principais inimigos do regime: estudantes, militantes de esquerda, artistas e intelectuais - nem sempre convergentes entre si.
Enquanto no volume inicial a ação quase sempre transcorre em ambientes públicos ou abertos, como universidade, ruas ou cidades-satélites de Brasília, em “Pontos de Fuga” o lugar preferencial de convívio é a residência estudantil. “A casa é a nossa ilha”, escreve uma das moradoras antes de anotar um trecho de “Divagação Sobre as Ilhas”, de Drummond de Andrade (1902-1987): “o último refúgio de liberdade, que em toda parte se quer destruir”.
Concebida em 1980, a trilogia adormeceu por quase 30 anos. Foi interrompida por exigir mais tempo e paciência. O ensaio “Reflexões Sobre o Exílio”, do palestino Edward Said, foi uma inspiração. Amadurecidas as memórias e meditações sobre a ditadura, Hatoum retomou o projeto em 2007, como um acerto de contas pessoal.
Queria concluir o “épico intimista” sobre o grupo de Brasília e São Paulo, desenrolado a partir dos diários de Martim no exílio em Paris, sua procura pela mãe desaparecida, amores e amizades em meio à repressão. “Estava faltando isso para mim”, diz o escritor, ao compará-lo com seu “Cinzas do Norte” (2005), romance igualmente transcorrido no período militar, mas na Amazônia.
Os livros de “O Lugar Mais Sombrio” foram escritos até 2017. Hatoum então se dedicou a ajustes no texto, em busca da forma final. As analogias com o país governado pelo presidente Jair Bolsonaro, que o leitor à procura de paralelos pode traçar em “Pontos de Fuga”, não foram, portanto, planejadas. Mas estão todas lá.
“Me surpreendeu um pouco”, diz o escritor sobre a atualidade de questões como a criminalização de adversários políticos, a difamação de artistas e da esquerda e o transe ideológico. “Eu não achava que o Brasil ia entrar em um ciclo de autoritarismo.”
Hatoum se apressa em limitar comparações com o regime militar. “Naquele tempo havia um clima de medo nas universidades e no meio artístico muito pior.” Mas, hoje, avalia, a tensão ressurgiu sobretudo para as minorias. “O discurso do presidente liberou esse tipo de repressão. O que é totalmente antidemocrático.”
Rebatendo a ideia de que críticas ao autoritarismo sejam exclusivas da esquerda, a narrativa é impulsionada pelo contraste político e de visões de mundo na república de estudantes. No livro, um personagem quase sempre diverge da militância. Morador da república, o jovem Ox - acrônimo de Osvaldo Xavier - é o guru intelectual do grupo, que cita com precisão autores, livros e poemas nas conversas mais pueris. Ao ouvir de uma colega o relato sobre uma “tempestade inesquecível” na volta de um passeio à Baixada Santista, graceja: “Tempestade inesquecível só a de Shakespeare”.
Exibicionista eloquente, à beira do insuportável, Ox não tem nenhum pendor ao pensamento de esquerda. Expressa a visão de mundo de um autêntico liberal. É a única figura do livro inspirada em uma pessoa específica, um amigo de Hatoum desde os anos 70, hoje professor da USP e poeta. O personagem enfrenta dificuldades por ser uma voz dissonante. “É porque o pensamento liberal não se adequa ao liberalismo brasileiro, que é de fachada, de interesse”, diz o escritor.
Verdadeiros liberais, segundo Hatoum, não refutam alguns ideais da esquerda ou da social-democracia. “Mas, para os falsos, a fórmula é o neoliberalismo do [Augusto] Pinochet [ditador chileno, 1915-2006]. Esse neoliberalismo extremado, para um liberal, é inaceitável.” Para Hatoum, falta diálogo no Brasil entre os verdadeiros liberais, que seriam poucos, e os partidos de centro-esquerda e esquerda. “Com a extrema-direita, com os extremistas de forma geral, não há chance de diálogo nunca.”
Junto às incompreensões políticas, a Amazônia surge na conversa. A floresta aparece de passagem em “Pontos de Fuga”, na carta de uma moradora da casa que vai fazer pesquisa antropológica numa aldeia indígena. Crítico do governo Bolsonaro, Hatoum publicou em agosto o poema “O Fim que se Aproxima”, no qual se revolta contra a destruição ambiental e as queimadas recentes na região.
“O governo atual não tem nenhuma preocupação com o meio ambiente. É uma questão da vida humana, não só da fauna e da flora. Não se deram conta de que a destruição da floresta será uma catástrofe até para os agricultores do resto do país.”
O escritor recorre a Euclides da Cunha (1866-1909), que nos ensaios de “À Margem da História” chama a Amazônia de infinito a ser dosado, pouco a pouco, paulatinamente. “É fundamental tentar entender a Amazônia do ponto de vista científico, cultural e antropológico. Aprender com os indígenas e os ribeirinhos. Eles sabem usar a natureza para a vida, sem espoliar ou destruir.”
Construir — recomenda uma epígrafe do livro pinçada da “Fábula de um Arquiteto”, de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Arquiteto de formação, Milton Hatoum explica em um trecho que “pontos de fuga” eram as rotas para escapar da polícia em caso de confronto. Em desenhos ou projetos, são também os pontos para onde convergem as linhas que criam uma perspectiva quando apontam para o horizonte.
*Texto originalmente publicado no Valor
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