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29.11.19   Páginas assombradas

Linguagem - A História da Maior Invenção da Humanidade: um cientista em busca da primeira conversa



O americano Daniel L. Everett colocou o mundo da linguística em guerra há mais de uma década, quando publicou um estudo sobre o idioma de uma pequena tribo da Amazônia, os pirahãs. O trabalho concluía uma pesquisa iniciada em 1977, ano em que o então missionário cristão foi viver com os índios às margens do rio Maici, na divisa do Amazonas com Rondônia, com a missão paralela de catequizá-los. Everett não cumpriu a tarefa, mas ao estudar a língua — inclusive na Unicamp — chegou a conclusões que abalaram a principal teoria moderna sobre a linguagem humana, elaborada nos anos 60 pelo influente linguista americano Noam Chomsky.

Everett identificou características peculiares no idioma pirahã: apenas oito consoantes e três vogais, números só até três, nenhuma palavra para cores, nem tempos verbais - é o contexto que diz se a pessoa está falando no presente, passado ou futuro. Também apontou que a língua não tinha uma gramática recursiva, a propriedade de conectar frases para formar uma só sentença. Em vez de falarem “o homem diz que a lua brilha”, os pirahãs dizem “a lua brilha” e depois “o homem diz”. Eles também não têm mitos de criação ou religião. A cultura, Everett interpretou, moldou uma língua adequada às necessidades da tribo.

O ex-missionário, que virou ateu após viver com os índios, desafiou assim um dos pilares da teoria de Chomsky: o de que as línguas humanas compartilham traços básicos universais, o principal sendo justamente a recursividade. Se é universal, a linguagem não depende da cultura. Para Chomsky, é um instinto desenvolvido pelos Homo sapiens a partir de mutação genética, entre 50 mil e 100 mil anos atrás. É a “teoria X-Men”, Everett agora provoca.

O linguista retoma a disposição de estremecer alicerces em “Linguagem: A História da Maior Invenção da Humanidade”. Recém-lançado em português com tradução de Maurício Resende, o livro publicado em 2017 nos EUA compila as pesquisas de Everett e busca argumentos em outras áreas científicas para defender a tese de que a linguagem surgiu centenas de milhares de anos antes do Homo sapiens. O protagonista da história agora é o Homo erectus. A evolução da cultura, e não a gramática ou a genética, vai para o centro do debate.

Para Everett, a linguagem não é uma capacidade inata, que adquirimos depois que nossos cérebros evoluíram a um determinado ponto. Os ancestrais humanos, diz o linguista, a inventaram gradualmente. “A linguagem não começou integralmente quando o primeiro hominídeo proferiu a primeira palavra ou sentença. Ela só começou de verdade com a primeira conversa.”

Falar uns com os outros, ele afirma, foi uma exigência imposta por tarefas cooperativas, como a caça e a exploração territorial. E para interagir por meio da fala não precisamos de uma gramática complexa.

Ao traçar seu panorama da evolução, Everett almeja uma escrita fluida que nem sempre alcança. Talvez, por razões acadêmicas, sua grande preocupação é enumerar evidências de que a conversa original ocorreu há pelo menos 1,5 milhão de anos, com nossos ancestrais que primeiro caminharam de pé. Os erectus são incansavelmente celebrados no livro: os “viajantes originais”, a espécie foi da África à Europa e ao Oriente em menos de mil anos, um intervalo pequeno em termos evolutivos.

Fazer viagens extensas, afirma Everett, requer planejamento. Isso só seria possível por meio de conversas, o que pressionou o erectus a desenvolver a linguagem. O autor explora ainda evidências arqueológicas: o erectus usava ferramentas (ainda que mais primitivas do que as dos sapiens), tinha organização social, dominava o fogo, cozinhava e conhecia símbolos na forma de decoração e ferramentas. Já tinham cultura. “Somente a linguagem é capaz de explicar essa revolução”, diz.

Everett não despreza a evolução até o Homo sapiens. O aumento da capacidade cerebral resultou em gramáticas mais complexas. Modificações nos ossos da boca e da garganta, em maior variedade de sons da fala humana. Mas a origem da linguagem não é uma questão de biologia pura, repete. Até hoje a ciência não identificou áreas específicas do cérebro responsáveis por essa capacidade, muito menos genes claramente programados para ela.

Para uma história da linguagem, o livro às vezes soa como um seminário de linguística. Além disso, alguns argumentos já foram contestados, como a suposta inexistência de recursividade no idioma pirahã. Para Everett, pouco importa. Na batalha científica sobre a origem da linguagem, ele segue com voz de comando.


*Texto originalmente publicado no Valor













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Um blogue não é mais uma blague. De agora em diante é uma página assombrada, uma ilusão encontrada, um roteiro de um filme para sempre, um guia útil para uma vida fútil, uma antologia ou mitologia pessoal, uma miscelânea pouco original, uma autoentrevista, um manual passo-a-passo de uma dança imóvel, um mistério a mais no mundo, um papel avulso, uma estranha obsessão, um crime sem castigo, uma adivinhação, um pássaro de uma perna só que foi ciscar e caiu, um suspiro, um minuto de silêncio.

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Vitor Pamplona nasceu em Barreiras, interior da Bahia, em 1981. Em Salvador, fez faculdade de direito, mas formou-se em jornalismo. Vive em São Paulo.

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