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19.7.19   Páginas assombradas

Noite em Caracas: o antichavismo produz uma alegoria do ressentimento




Tomar partido é a atitude que antecede a luta pela sobrevivência em qualquer confronto mortífero, em sentido literal ou figurado. A neutralidade é luxo de quem não corre, ou não enxerga riscos. Nas páginas de Noite em Caracas (La Hija de La Española no título original), as ruas da capital venezuelana são território inimigo e campo de batalha permanente, onde é preciso lutar até por um lugar para morrer. A cidade degradada é um manicômio a céu aberto, patrulhado por milícias e agentes das forças armadas. Um lugar análogo ao inferno. Falta comida, remédios, tratamento médico, energia elétrica, segurança. Sobram medo, truculência, barricadas de pneus em chamas e o som de tiros atravessando o ar.

Mas ainda existe vida inteligente em Caracas, no sentido “civilizado” do termo. Quem a personifica no livro de Karina Sainz Borgo é a protagonista e narradora Adelaida Falcón, uma editora-revisora freelance que acaba de ficar órfã. Sua primeira tarefa na trama é enterrar o corpo da mãe, professora de quem herdou nome (também se chamava Adelaida) e visão ilustrada de mundo, construída à base de liberdade de escolha e livros: A sangue frio (Capote), O outono do patriarca (García Márquez), Por quem os sinos dobram (Hemingway) e A casa verde (Vargas Llosa) eram os brinquedos que mais a distraiam na infância enquanto a mãe dava aulas.

É nesta perspectiva razoavelmente letrada, liberal e burguesa que história e narrativa se desenrolam, com no pano de fundo uma sociedade rachada por um governo que se aliou a delinquentes e criminosos a fim de saquear a classe média. Palavras de Adelaida, a filha: “Naquele país, a única coisa que funcionava era a máquina de matar e roubar, a engenharia da pilhagem. Eu os vi crescer e formar parte da paisagem, à qual se acomodaram como algo natural: uma presença camuflada na desordem e no caos, protegida e alimentada pela Revolução”.

De saída, Noite em Caracas é transparente: há um só ponto de vista. Não apenas crítico da revolução bolivariana, mas abertamente antichavista, ainda que nenhuma das suas figuras históricas seja explicitamente citada. No lugar de Hugo Chávez, existe um anônimo e já falecido Comandante-Presidente. Ao invés do herdeiro político Nicolás Maduro, a menção é aos seus “sucessores”, apoiados pela elite do regime conhecida como Filhos da Revolução. Ponto para Karina Sainz. As palavras têm significado e o que a venezuelana pretende é assegurar que Noite em Caracas não possa ser interpretado como descrição realista. Metáforas pulsantes completam a composição alegórica. “Mais do que funerárias, a cidade tinha fornos”, define em uma frase. É “um lugar no qual a morte se equiparava às baixas ocasionadas por uma peste”.

Situada a ação, o que se vai narrar são as circunstâncias que levam à tomada de atitude. Por algum tempo, nas páginas iniciais, Adelaida observa sem reagir à demolição do seu mundo. As ameaças vão se acumular. Numa primeira cena de extrema tensão, logo após o enterro da mãe, ela cruza no cemitério com uma infantaria de motociclistas conhecida como Motoqueiros da Pátria. Os milicianos também enterram seus mortos, improvisando um altar no qual o caixão é golpeado com ramos de ervas e benzido com cusparadas de álcool. Todos dançam ao som de um reggaeton interminável e uma mulher sobre o ataúde esfrega a vagina na tampa de latão (crônica política e fantasia policial sempre se fundem em Noite em Caracas produzindo um certo surrealismo macabro).

Adelaida só quer voltar para casa. Só deixa o refúgio para ir ao hospital ou conseguir comida e outros itens de primeira necessidade. Quando pensa estar de novo a salvo, descobre que teve seu apartamento invadido (ocupado?) por um grupo de mulheres vestidas com camisetas vermelhas e jeans apertados que ressaltam “suas pernas grossas, com pés elefânticos calçados em chinelos de plástico”. São morenas “monumentais em sua gordura”, que suam “como caminhoneiros” e têm “cheiro azedo e escuro”. Nestes termos, a descrição pode muito bem ser taxada de classismo ou até racismo.

É uma solução apressada, pois o imaginário de classe média construído por Adelaida contrapõe os bestiais Filhos da Revolução e seus seguidores ao idílio de um país semirrural, perdido no passado, no qual convivem emigrantes e negras piloneras, as mulheres batedoras de pilão cujo canto Adelaida guardou da comunidade costeira onde passava as férias na infância. Ocumare, a pacata e florida cidadezinha litorânea que ressurge de suas memórias pontuando a narrativa, é a utopia territorial privada e possível que se opõe à crua realidade pública do presente.

Na alternância entre a trama que engrena e as recordações que se acumulam, ecoam palavras de uma vítima de aniquilamento cultural: “A primeira morte acontece na linguagem, nesse ato de arrancar os sujeitos do presente para instalá-los no passado. Transformá-los em ações acabadas. Coisas que começaram e terminaram em um tempo extinto. Aquilo que foi e não será mais.”

Sem mãe, sem casa, sem esperança de recobrar o país que permitia a dissonância, Adelaida se refugia no apartamento da vizinha, a filha da espanhola do título original. A trama então caminha para o desenlace didático: sua única chance de sobreviver é apagar sua identidade. É uma morte ressentida, que a nostalgia dos afetos e do contrato social rasgado pelos revolucionários não apazigua. Há na primeira metade do livro um trecho em que a narradora compara a Venezuela com a ditadura de Pinochet, quando recorda de uma professora chilena exilada. Ao relatar a ingenuidade infantil, pergunta como um presidente pode obrigar pessoas a ir embora do próprio país. Esse tipo de reflexão mais analítica desaparece aos poucos. Em um diálogo com um conhecido que se converteu ao regime para não morrer torturado, Adelaida ouve um comentário sobre a morte da mãe: “Que grande merda, não?”. Então retruca: “Qual delas? O câncer, o governo, a escassez, o país?”. Irreconciliável, em pouco tempo ela o estará chamando de “maldito país”.

Além do ressentimento, Noite em Caracas é movido por solidão. A batalha constante pela manutenção do poder desfaz amizades e afasta familiares. Em um romance protagonizado, narrado e tramado por mulheres, é notável que todos os personagens masculinos estejam mortos, à beira da morte, ou não sejam confiáveis.

Uma questão final sobrevoa suas páginas. Noite em Caracas é uma obra de propaganda? Há sem dúvida uma voz maniqueísta, plenamente justificável do ponto de vista de uma narradora violentada e espoliada. A verdade particular pode ser classista, e apesar de também possuir legitimidade popular — classe média também é povo —, o que interessa em um romance é a verdade literária.

Entre livros recentes que gravitam em torno da crise na Venezuela, os dilemas do maniqueísmo são mais explorados em Pátria ou Morte, do venezuelano exilado no México Alberto Barrera Tyska (é a história da aflição de um médico e professor universitário dividido entre a mulher, uma inflamada antichavista, e o irmão, defensor radical da revolução bolivariana).

Quase distópico, escrito sob a premissa da impossibilidade de qualquer reconciliação social, Noite em Caracas tem lado. A neutralidade é um luxo de quem não corre riscos.

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Sobre

Um blogue não é mais uma blague. De agora em diante é uma página assombrada, uma ilusão encontrada, um roteiro de um filme para sempre, um guia útil para uma vida fútil, uma antologia ou mitologia pessoal, uma miscelânea pouco original, uma autoentrevista, um manual passo-a-passo de uma dança imóvel, um mistério a mais no mundo, um papel avulso, uma estranha obsessão, um crime sem castigo, uma adivinhação, um pássaro de uma perna só que foi ciscar e caiu, um suspiro, um minuto de silêncio.

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Vitor Pamplona nasceu em Barreiras, interior da Bahia, em 1981. Em Salvador, fez faculdade de direito, mas formou-se em jornalismo. Vive em São Paulo.

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