Danos colaterais. Durante os anos da Guerra do Vietnã, a terminologia militar americana começou a designar mortos ou feridos não-combatentes com este termo hoje familiar até para fãs de Arnold Schwarzenegger. A expressão, é claro, já existia. Mas se tornou amplamente conhecida quando relatórios militares vazados na imprensa foram flagrados usando-a como um eufemismo: civis vietnamitas assassinados por soldados americanos ou propriedades sem importância estratégica bombardeadas intencionalmente viraram “danos colaterais” da guerra.
Em dimensão moral e espiritual, o cinema do diretor chinês Jia Zhangke mapeia “danos colaterais” deixados pelo avassalador desenvolvimento econômico da China em seu caminho rumo ao alto do pódio mundial do PIB. Os filmes, felizmente, não são feitos de estatísticas. As ideias precisam surgir de situações concretas na intimidade dos personagens.
Em Amor Até as Cinzas, em cartaz nos cinemas, a ideia é acompanhar quase duas décadas da vida de Qiao, a namorada do líder de uma espécie de irmandade mafiosa na pequena cidade de Datong, no norte da China. Na língua local, a organização é chamada de jianghu. É um mundo de homens, no qual Qiao transita com altivez e desenvoltura, impulsionada pelo amor por Bin. Ela entra na casa de apostas e jogatinas de tabuleiro mantida pelo grupo distribuindo socos amigáveis. Em seguida se ajeita ao lado do namorado, imerso na disputa de uma partida, e rouba o cigarro aceso da sua boca. Qiao claramente domina os códigos de representação de força neste submundo. Também dominará a história, mas terá dificuldade para dominar o mundo que se transforma em sua volta.
As mudanças não estão apenas nos sinais culturais emprestados do Ocidente capitalista. Estamos em 2001, no início do século chinês, mas na pista de dança de um clube noturno — outro negócio explorado pelo jianghu — as pessoas enlouquecem ao som de Y.M.C.A., de 1978. Um barulho paralisa Qiao, que observa algo no chão. Trata-se de uma pistola, que caiu da cintura de Bin, a quem Qiao recrimina com o olhar. Paradoxalmente, chega a ser inquietante que em duas horas e dezesseis minutos de exibição de personagens supostamente criminosos e familiarizados com situações violentas os revólveres só sejam disparados três vezes, todas para o ar.
Mas a violência, logo veremos, também é dano colateral em vidas insubordinadas ao poder oficial. Em uma disputa com uma gangue de jovens arruaceiros, Qiao decide defender Bin com a arma. É o ponto em que tudo o mais sai do controle, eles terão de se separar e as regras do jianghu não terão valor diante das leis do Estado.
Então entra em movimento outra ideia de Jia Zhangke, a de transformar um filme de gângsters em um drama sentimental. Não é um procedimento inédito para o diretor chinês. A depender do referencial e da boa vontade do espectador, pode dar em um retrato fascinante de como também nas artes, não só na sociedade, se tornaram intangíveis as fronteiras entre os gêneros. Ou, ao menos, servir de guia introdutório à música brega da China contemporânea, onde a sofrência — o filme não deixa dúvida — também é popular.
Há muitos lugares comuns rondando tudo o que envolve storytelling hoje em dia, inclusive a sensação de que tudo envolve storytelling, da venda de sabão em pó à eleição do presidente da República. Mas no caso de Jia Zhangke, o princípio “se quiser ser universal, comece pintando sua aldeia” (a frase é atribuída a Tolstoi, mas nunca a li escrita por ele) continua insuperável.
Logo no início da história, a câmera passeia por rostos anônimos em um ônibus que percorre uma estrada empoeirada. É como se voltássemos ao primeiro filme de Jia, Xiao Wu - Um Artista Batedor de Carteiras (no Brasil foi inicialmente chamado de Artesão Pickpocket). Nele o personagem do título também observa os passageiros, a gente comum que ainda hoje habita o interior pobre da China, em busca de uma vítima a ser furtada. Apesar de ser um ladrãozinho menor, Xiao Wu compartilha com os personagens de Amor Até as Cinzas o destino errante dos marginais.
(Nota biográfica: numa entrevista para o documentário Jia Zhangke, Um Homem de Fenyang, do brasileiro Walter Salles, o diretor chinês conta que durante muitos anos, mesmo após o início do regime comunista, muitas crianças chinesas só ficavam na escola até aprender a ler e fazer contas. Ao saírem, algumas não encontravam emprego e tinham como única opção virar ladrões. Jia diz que entre oito e dez amigos seus de infância se tornaram ladrões por falta de outra perspectiva profissional).
No filme de 1997, a câmera desce do ônibus junto com Xiao Wu e vai acompanhar sua existência desvalida. Em Amor Até as Cinzas, o rosto escolhido é o de Qiao, mas todos os demais teriam uma história para ser contada. Estamos no terreno das banalidades expressivas, uma obsessão que Jia Zhangke já explicou em uma palestra para estudantes da Academia Central de Belas Artes de Pequim: “Quando eu estudava o cinema chinês pós 1949 (ano da revolução comunista), percebi que a vida cotidiana não existia mais. A fraqueza humana, o movimento físico espontâneo, até a linguagem tinha mudado. Nenhum dos personagens na tela tinha sotaque. Não havia mais terra natal, nenhuma identidade cultural. Todo mundo falava como um locutor de rádio”.
É possível deduzir que o interesse por recuperar identidades pessoais em meio à política pública da homogeneização cultural tenha resultado no projeto de mostrar o impacto das transformações sociais no mundo interior de quem não pegou o trem da expansão econômica e do pensamento único. Os trens, por sinal, são grandes marcos históricos em Amor Até as Cinzas. Da antiga máquina a combustão até os modernos trens-bala, conduzem a passagem do tempo em um filme que na prática atravessa todo o século 21. Jia Zhangke não renega o bem-estar crescente da maioria da população. Mas sua visão, ao contrário da vendida pelo governo chinês, reserva bastante espaço para a desolação, esse sentimento que trens atravessando paisagens desérticas tão bem traduzem.
Em chinês, o título original de Amor Até as Cinzas é Crianças do Jianghu. Em um diálogo chave Qiao diz a Bin que quando fala do jianghu, “fala de retidão”. Apesar de modernamente ter se tornado uma expressão equivalente a máfia ou sociedade criminosa, quando surgiu séculos atrás a palavra não estava associada ao crime — ao pé da letra jianghu significa “rios e lagos”. Originalmente, foi usada para denominar pessoas que se afastavam da vida urbana e das relações com o governo, adotando um estilo de vida semelhante ao de eremitas que também se tornavam grandes lutadores marciais.
Com o passar do tempo, a literatura chinesa expandiu seu significado para o de uma classe social: os membros subalternos da sociedade, dos pequenos comerciantes e artesãos aos vagabundos e arruaceiros. Mas prossegue a noção de que integrantes do jianghu mantêm distância do poder oficial. O que os une é um código de honra pelo qual prezam por independência, por isso não devem se envolver com o governo. Os conflitos são resolvidos pela meditação, negociação ou força — mas sempre internamente, dentro do próprio jianghu, sob a arbitragem de um “irmão mais velho”.
É o papel que Bin começa o filme desempenhando. Sem conseguir uma posição de importância junto aos novos donos do dinheiro, sua figura se torna cada vez mais melancólica. Os infortúnios refletem a decadência da irmandade e suas tradições frente à ascensão dos burocratas e seus aliados. Esses progridem, enquanto os membros do jianghu não têm chance. Sentem-se inadequados, inclusive por causa de seu código moral. Para Jia Zhangke, as cinzas não são só do amor de Qiao e Bin, a elas também vão se reduzindo as antigas regras de conduta, os costumes ancestrais, as identidades locais e tudo o que for dissonante da grande potência mundial.
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