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19.10.17   Ilusões políticas

A biblioteca de Sérgio Moro: uma espiada

Exibida em horário ingrato, perto da meia-noite da terça-feira da salvação de Aécio Neves pela maioria do Senado, a rara entrevista que o juiz Sérgio Moro deu ao repórter Gerson Camarotti não teve declarações bombásticas, respostas emocionantes nem duelos verbais.
 
O homem que encarna mudanças e turbulências pelas quais o Brasil passa há mais de três anos não é o tipo de personagem que fala pelos cotovelos, aprecia frases de efeito, gosta de contar histórias, ataca os críticos com virulência ou solta aspas cuidadosas para batalhar aquela manchete — em suma, o juiz não se enquadra no perfil de um bom entrevistado. Moro é contundente, repete seus mantras e reafirma suas convicções, mas é previsível. 
 
Por isso soa tão pouco interessante o que tem a dizer. De uma forma geral, todo mundo já sabe o que sairá da sua boca. Daí que mais intrigantes do que suas respostas (ou seu silêncio) eram as perguntas que o repórter lhe faria. De saída Camarotti usou a técnica consagrada de amaciar o entrevistado, sem provocá-lo de imediato, e pediu a opinião dele sobre o próprio trabalho — quer dizer, sobre ele mesmo. Como esperado, Moro não respondia perguntas, palestrava.
 
Só depois da metade da entrevista foi confrontado com questões mais espinhosas, como as prisões preventivas. E em que pese o repórter não ter nem sequer feito menção ao momento mais abominável da atuação do juiz na Lava Jato, a captação e divulgação ilegal do fatídico telefonema entre Dilma e Lula sobre a nomeação do ex-presidente para a Casa Civil — a gravação do “Bessias” — não se pode dizer que Camarotti não tenha feito um bom trabalho. Moro é previsível, mas é pouco acessível.
 
Lá pelo terço final, quando a troca de gentilezas já estava restabelecida, olhando para aquela cena batida, a típica imagem do sábio enquadrado pela câmera e escoltado por sua estante cheia de livros, percebi que a única coisa inesperada que podia descobrir estava ali. Nos livros do presumível gabinete de Sérgio Moro, os livros que Moro leu, ou lerá, ou um dia imaginou que leria. Percorri lentamente prateleiras, tentando identificar títulos, a cabeça do juiz se mexendo de um lado para outro dificultando a tarefa. Peguei o celular, toquei no ícone da câmera, fiz um par de fotos. Dei zoom à procura do inesperado e me lembrei do fotógrafo de Blow-up, o filme de Antonioni (poderia ter sido Blade Runner, mas quem controla a memória? Acabei entrando a madrugada tendo nas mãos o conto de Cortázar que inspirou o gênio italiano). 
 
Moro, como se espera de juízes de direito, advogados, promotores ou qualquer um que trabalhe na área, tem livros acadêmicos e técnicos na estante. A prateleira que ele revelou ao Brasil guarda na ponta esquerda de quem a vê Crimes Hediondos, de Alberto Silva Franco, que a sinopse da editora diz ser um “clássico da literatura jurídica” no qual “em linguagem direta e acessível, os autores dissecam o crime hediondo em todos os seus aspectos”. Perto encontramos um título de teoria geral do direito, cujo título completo e autor não consegui decifrar; a centímetros de um pequeno busto que parece o de Napoleão está Eficácia Civil da Sentença Penal, de Araken de Assis, que tem um resumo que gostaria de não ter lido; e um pouco mais à direita, com lombada rosa, um exemplar da Revista da Faculdade de Direito da UFPR.
 
Há um grande livro de história, Crime e Cotidiano, do historiador e cientista político Boris Fausto, que analisa a evolução da criminalidade em São Paulo de 1880 a 1924 partindo das estatísticas criminais e procura demonstrar, cruzando a frieza dos números com realidade sociológica, processos penais e políticas de governo, que “a criminalização dos subalternos revela-se como poderoso instrumento de controle social”, escreve no prefácio o sociólogo Sérgio Adorno. E pelo menos um conhecido livro de reportagem, Os Últimos Mafiosos, no qual o jornalista britânico John Follain traça perfis e conta a história dos principais integrantes do clã Corleonesi, que dominou a máfia italiana e inspirou Mario Puzzo a escrever O Poderoso Chefão. 
 
Dois livros americanos merecem atenção, e não é segredo a admiração de Moro pelo sistema judicial dos Estados Unidos. Um é The Great American Crime Decline, do professor de criminologia Franklin E. Zimring, considerado o mais elaborado estudo sobre a queda da violência urbana nos Estados Unidos ao longo da década de 1990, período da “tolerância zero” e de encarceramento em massa. O outro é Harsh Justice, do advogado e professor de direito comparado James Q. Whitman, um estudo que contrapõe o histórico de punições duras aos criminosos nos Estados Unidos com as penas consideradas mais brandas na Europa, e aponta que a raiz do sistema judicial “impiedoso” dos americanos está em uma sociedade menos hierarquizada. 
 
O maior volume visível é The Memory of Pablo Escobar, de James Mollison, uma biografia fotográfica do chefe do cartel de Medellín. Nela, fotografias até então inéditas da intimidade do traficante e depoimentos de figuras que o conheceram delineiam um perfil, na definição de Mollison, mais complexo e menos glamuroso do colombiano — o que pode ser útil para compreender a figura humana por trás do crime, muitas vezes retratada no cinema ou séries de TV como uma mistura de vilão e bufão. 
 
Bibliotecas privadas contam histórias sobre seus donos e muitas vezes refletem o que pensam, em que se interessam. Os poucos títulos aleatórios, distribuídos em uma única prateleira na estante do presumível gabinete do juiz, certamente são insuficientes para saber o que faz a cabeça de Sérgio Moro, mas não deixam de indicar pistas para o “universo moral” (com trocadilho) no qual o grande timoneiro da Lava Jato se vê inserido. 
 
Em que implica uma equação que envolve lições sobre controle social, predileção por punições duras e exemplares e histórias de vida de grandes mafiosos que se achavam acima das leis? Um juiz obviamente tem uma aspiração de justiça, mas na prateleira de Moro a inspiração é de justiça histórica.    

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Um blogue não é mais uma blague. De agora em diante é uma página assombrada, uma ilusão encontrada, um roteiro de um filme para sempre, um guia útil para uma vida fútil, uma antologia ou mitologia pessoal, uma miscelânea pouco original, uma autoentrevista, um manual passo-a-passo de uma dança imóvel, um mistério a mais no mundo, um papel avulso, uma estranha obsessão, um crime sem castigo, uma adivinhação, um pássaro de uma perna só que foi ciscar e caiu, um suspiro, um minuto de silêncio.

QUEM FAZ

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Vitor Pamplona nasceu em Barreiras, interior da Bahia, em 1981. Em Salvador, fez faculdade de direito, mas formou-se em jornalismo. Vive em São Paulo.

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