Hora Prima
  • Twitter
  • Instagram
  • Facebook
5.8.17   Notas musicais

Luiz Melodia: o sucesso é sereno

Em uma entrevista de 2002, quando contava 51 anos de idade e festejava 30 de carreira, Luiz Melodia imaginava a chegada da velhice em um futuro manso, cercado de morros flutuantes cobertos de mata atlântica e salpicados por cascatas sonoras. "Um lugar maravilhoso", definiu, buscando no adjetivo impreciso a tradução de um sentimento inefável. Seus olhos enxergavam a paisagem acolhedora e o clima ameno de Penedo, vila no interior do estado do Rio fundada por imigrantes finlandeses no sopé da Serra da Mantiqueira. A região atraía a personalidade afável, mas no fundo tímida, de um autor de canções populares que dizia se assustar com o sucesso, “constrangedor demais”. 

“Acredito que vou lidar bem com o envelhecimento. Tenho expectativas muito legais de uma vida serena e, se possível, até mais distante do Rio”, programava. O refúgio era a casa que tinha começado a construir em Penedo, mas jamais iria acolher o cantor e seu violão conforme planejado, nem testemunhar seus últimos instantes de consciência, passados sobre a cama de hospital onde morreu de madrugada, em meio à luta contra um câncer na medula óssea. 

O projeto de velhice de Melodia incluía outra exigência: “Nada de cortar coisíssima nenhuma do envelhecimento, acho um horror as pessoas que se cortam sem deixar as marcas do seu tempo na Terra”. 

Com exceção de sua primeira mulher, que desapareceu grávida do primogênito Hiran e só ressurgiu dois anos depois, talvez ninguém tenha cortado nada da vida ou dos discos de Luiz Melodia. As músicas que compôs, os álbuns que gravou, tudo foi sempre resultado do compromisso exclusivo com uma personalidade poética inconcessível. 

Por fim, a marca deixada por ele na Terra terá sido o oposto dos cortes, divisões ou restrições. Como poucos cantores e compositores de música popular, Melodia desenvolveu uma invejável capacidade de aglutinar estilos e influências, a começar pela negativa de se enquadrar, logo que apareceram suas primeiras canções, no protótipo do artista preto e favelado que sai do morro e é domesticado pelo asfalto na figura — nos anos 70 já um pouco folclórica — de sambista. 

Sua rebeldia musical e desenvoltura criativa foram um grito de liberdade que ecoa contra o preconceito e a imobilidade social. “Quando desci do morro, reclamavam por eu não fazer samba. Até hoje quando sou apresentado a alguém que não me conhece, perguntam se sou sambista. Nada contra, é maravilhoso, já fiz sambas, mas não é pelo cara ser negro e nascido no morro que vai ser sambista, né?”.

Pode haver algo de edipiano nessa profunda e, quem sabe, inata convicção. Próximo de tradicionais rodas de samba e choro desde a tenra infância por causa do pai, o sambista Osvaldo Melodia — de quem adotou o sobrenome artístico — o adolescente Luiz Carlos montou o grupo Os Instantâneos para animar festinhas com música jovem, feita para dançar. Há, nessas circunstâncias, imagem mais libertária do que a cena de jovens tocando Beatles e dançando twist no morro? Rockeiro e pé de valsa, Luiz venceu dois concursos da modalidade. 

A versão oficial é de que Osvaldo não gostava das peripécias musicais do garoto. Luiz era seu único filho homem e o pai preferia vê-lo doutor, formado na universidade. Mas não há notícia de que tenha se oposto, provavelmente por compreender que estava na ordem natural das coisas um menino que crescera com músicos e boêmios em sua volta, no berço da primeira escola de samba do Brasil, escolher fazer música. Ou ser escolhido por ela. 

Apesar de ter evitado desde sempre o rótulo de sambista e projetado em suas escolhas estéticas um artista moderno, no qual fundia atitude de ídolo da pop music com o estilo e a independência de um ativista negro, Luiz Melodia não era um desertor. Um amigo me disse uma vez que não é confiável quem fala mal de sua cidade natal. Me lembrei disso ao pensar em Estácio, Holly Estácio, a grande declaração de amor de Luiz Melodia ao bairro de onde veio, e em como o Estácio nunca perdeu para ele seu significado afetivo, até quando brincava de mudar a letra da canção provocado pelo estado atual do seu morro de São Carlos, dominado pelo tráfico de drogas: "Se alguém quer matar-me de amor, NÃO me mate no Estácio". 

Até para dizer não, com sua voz de veludo, Luiz Melodia não hesitava ao contrariar expectativas. Admiravelmente, tomava posições com doçura e, clichê necessário em seu caso, elegância. Assim incorporou a tradição boêmia do samba e conciliou os morros pretos e pobres com a modernidade musical que fazia a cabeça da classe média branca — Jovem Guarda, Bossa Nova, rock e soul americanos. 

Logo no primeiro disco, Pérola Negra, mostra capacidade de ir além: começa com um samba tradicional, desliza para o rock suingado já na quarta faixa e termina com um inacreditável forró, no qual escutamos ao fundo berros incompreensíveis, de uma espécie de backing vocal extasiado e mal-educado. Pérola Negra, a música que deu nome ao álbum, se chamava My Black até que o poeta Waly Salomão, em busca de novas canções para o show "Fa-Tal — Gal a Todo Vapor", de Gal Costa, topou com Luiz Melodia e sugeriu a mudança de nome. 

O encontro com "a turma dos baianos", que aglutinava os tropicalistas da música e outras artes — Luiz Melodia se tornaria próximo também do artista plástico gaúcho Hélio Oiticica e do poeta piauiense Torquato Neto — caiu do céu, para repetir a expressão que o próprio Melodia usou. Tudo aconteceu quando pensava em desistir da música, decepcionado com a pouca repercussão de apresentações em programas de calouros no rádio, para os quais ia sozinho, sem conhecer ninguém.

Curiosamente, a amizade e proximidade com os tropicalistas, com os quais tanto conviveu e dialogou, não fez de Luiz Melodia um deles. Tenho a impressão de que foi um caso de incompatibilidade programática: àquela altura, Melodia era um artista mais versátil e com interesses mais amplos. Síntese de Waly Salomão: "Um surto seminal dum novo canto do negro mulato cafuzo brasileiro internacional jovem".

Os muitos elogios e homenagens após sua morte, apesar de belos e justos, camuflam uma verdade pouco conveniente em ambientes lúgubres. Luiz Melodia de certa forma ressentia-se de, passado o surto inicial, nunca mais ter sido uma grande aposta das gravadoras que, até anos atrás, dominavam o mercado da música no Brasil. Por não ser considerado bom de venda, foi tachado de "maldito", ao lado de músicos como Jards Macalé, Sérgio Sampaio, Jorge Mautner e Tom Zé. Com 16 discos lançados, só um ultrapassou a marca celebrável das 100 mil cópias, o Acústico Ao Vivo, de 1999. 

Para fazer muito sucesso, sabia ser preciso "ir a muita televisão, rádio, toda hora estar ali". Mas isso era "constrangedor demais".

Comente:

Assinar: Postar comentários ( Atom )

Sobre

Um blogue não é mais uma blague. De agora em diante é uma página assombrada, uma ilusão encontrada, um roteiro de um filme para sempre, um guia útil para uma vida fútil, uma antologia ou mitologia pessoal, uma miscelânea pouco original, uma autoentrevista, um manual passo-a-passo de uma dança imóvel, um mistério a mais no mundo, um papel avulso, uma estranha obsessão, um crime sem castigo, uma adivinhação, um pássaro de uma perna só que foi ciscar e caiu, um suspiro, um minuto de silêncio.

QUEM FAZ

QUEM FAZ
Vitor Pamplona nasceu em Barreiras, interior da Bahia, em 1981. Em Salvador, fez faculdade de direito, mas formou-se em jornalismo. Vive em São Paulo.

Tags

  • Crônicas sem castigo
  • Estranhas citações
  • Ficções avulsas
  • Filmes para sempre
  • Foto-mistério
  • Ilusões políticas
  • Notas musicais
  • Páginas assombradas
  • Sem mais por ora

Contato

Nome

E-mail *

Mensagem *

Template by Templateism | Templatelib