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1.5.17   Filmes para sempre

Joaquim: Tiradentes antes da fama


 No cabedal dos filmes que retratam eventos ou figuras históricas, há os que contam e os que conversam. Joaquim, o admirável exercício de imaginação sobre a formação política do Tiradentes dirigido por Marcelo Gomes, se insere entre os que dialogam enquanto preenche lacunas — entre a certidão de batismo e os autos da devassa da Inconfidência, sobraram de seu mártir cartas e documentos burocráticos que pouco revelam da sua personalidade e de seus passos antes de ingressar no movimento separatista. Poucas vezes um filme de história do Brasil terá sido mais expressivo do seu próprio tempo. Da costura do texto ao temperamento dos personagens, Joaquim é na sua integridade um diálogo entre o país em gestação e o país de hoje, adulto disfuncional que carrega sem disfarces suas marcas de nascença. De antemão, Joaquim começa pelo título, uma clara autoexplicação. Este não é um filme sobre o "herói" da nascente pátria brasileira, enforcado e esquartejado por trair a coroa portuguesa e martirizado quase um século depois pelo movimento republicano; é um filme sobre um homem chamado Joaquim. Um soldado maltrapilho do Exército colonial, caçador de contrabandistas de ouro no sertão descampado das Minas Gerais, que ambiciona uma promoção para deixar de ser alferes, segunda patente mais baixa na época, e algum prestígio e dinheiro que venham acompanhados das dragonas de tenente. 

A demolição dos livros escolares se aperfeiçoa em habitações precárias e correrias em matagais, distantes dos casarões e ladeiras das cidades mineiras do ciclo do ouro. E se completa com auxílio de uma paisagem humana grosseira e sebenta na qual as leis da rainha valem menos do que a lei da selva. No cada um por si de Joaquim, há discussões por causa do ensopado, corrupção mal disfarçada, abuso de subordinados, polifonia de idiomas, chantagem com dentes apodrecidos e um quase anti-herói com piolhos nos cabelos. O salve-se quem puder molda a vida na colônia. Mas este universo só se estrutura em representações dos estratos e múltiplos conflitos da primordial sociedade brasileira: colonizadores versus colonizados, exploradores versus explorados, portugueses versus brasileiros, ricos ou remediados versus miseráveis, cidadãos livres versus escravos, brancos versus negros e índios. O gosto pela alegoria foi em outras épocas um vício inerente de filmes históricos no Brasil. Joaquim escapa do reducionismo tecendo relações pessoais de figuras inconstantes, escorregadias e contraditórias. A escrava (Isabél Zuaa) com quem Tiradentes se enrabicha, que simbolicamente corta a golpes de faca a cabeleira clássica do santo republicano, é afetuosa e astuciosa. O soldado (Rômulo Braga) a ele subordinado e o escravo (Welket Bungué) de quem é dono são fiéis, mas autônomos. E o próprio Joaquim (Júlio Machado), hesitante para negociar escravos e um funcionário crédulo da meritocracia, pode se revelar impetuoso explorador de ouro em busca de riqueza e um arrivista dissimulado. 

Com paisagem de faroeste, luz natural e tremedeiras da câmera na mão (que às vezes comprometem o que seria preferível ver com mais clareza), o resultado é uma atmosfera ultrarrealista, que dá a Joaquim certo caráter documental. Na cena que mais evidencia essa inspiração — a grande cena poética do filme —, o escravo negro e o índio que integram uma expedição em busca de ouro começam a cantar ao alvorecer de mais um dia nos confins do sertão. Os dois não falam o idioma um do outro, um desconhece o significado do que o outro canta. Mas aos poucos se estabelece um diálogo que lembra as batalhas de rimas do rap ou um desafio de repentistas. Com esta versão primitiva das emboladas, a música (a cultura) dos subalternos insinua a utopia da identidade multicultural brasileira, enquanto o dono dos seus destinos, o protótipo do brasileiro mestiço original — o pré-histórico Tiradentes — ainda não despertou. Cenas como esta e a rejeição de Marcelo Gomes ao estilo grandiloquente do tradicional "filme de época" ajudam a sustentar a ideia de que Joaquim seja, talvez acima de qualquer outra coisa, uma espécie de estudo etnográfico e das relações sociais do Brasil colônia do século 18. Isso é pano de fundo, conjuntura. Mais interessante é a ficção pessoal desenrolada no personagem principal. É como uma consequência desse exercício de imaginação que o filme se vê.   

UM NOVO MITO

Na sessão de pré-estreia de Joaquim em São Paulo, Marcelo Gomes fez um breve agradecimento antes da exibição. Dedicou o filme "a todas as pessoas que estão lutando contra o governo ilegítimo", deixando a sensação de que o exposto em seguida poderia repercutir especialmente entre os que se opõem à "pausa democrática" que desmantela o esboço do estado social brasileiro sem contrapartidas do capital financeiro. Depois de Aquarius ter se tornado uma bandeira de resistência contra o golpe que não gosta de dizer seu nome, ampliando seu significado cultural para além da tela do cinema, Marcelo Gomes poderá ser acusado de tentar surfar no momento político para deixar mais atrativo seu filme. Nenhuma tentativa de criar paralelos entre a ficção de Joaquim e a realidade do Brasil de hoje poderá ser tão efetiva quanto o filme em si. Discursos serão sempre menos eficazes do que uma narrativa movida pelos males da colonização, pela cultura patrimonialista das autoridades e pelas artimanhas dos donos do poder.

Se o Tiradentes um dia sonhou em mudar este estado de coisas, terá feito por altruísmo e consciência social? A resposta buscada por Joaquim é a motivação do revoltoso. O que levou um alferes, funcionário da coroa, a se rebelar contra seus superiores e conspirar pela queda do regime? O que leva um homem comum, que não integra a elite econômica nem política acostumada a tomar partido nos jogos de poder, a se filiar a uma causa destinada a subverter todo o sistema de governo de um país? As questões que o filme coloca igualmente projetam uma sombra do presente ao enxergarem no Tiradentes um representante do povo, enquanto a figura histórica era o filho de uma família importante, empreendedor, frequentador da alta sociedade e, à altura de sua prisão, proprietário de bens compatíveis com uma considerável fortuna. 

Desde suas primeiras cenas, o filme encuca um pressuposto: Joaquim, o homem comum e despossuído, quer subir na vida. Faz seu trabalho esperando ser reconhecido e recompensado. O modelo é o do funcionário padrão de uma empresa ou repartição. Joaquim sempre entrega bons resultados, captura contrabandistas, delata corruptos. Mas nunca lhe dão a sonhada promoção. Segue levando a vida como cidadão confiável aos olhos do patrão, que não o valoriza com um cargo mais elevado; só continua a lhe incubir missões. O destino que até então lhe negara uma vida melhor coloca em seu caminho o que na visão do funcionário é a sua grande chance. Encarregado de comandar uma expedição para encontrar novos veios de ouro em um momento de decadência do garimpo, o homem sonha em da viagem voltar com o seu quinhão. A aventura não rende a recompensa esperada para o personagem e o filme. A sequência no grande sertão deixa a impressão de uma metáfora involuntária: assim como o garimpeiro Joaquim, por longos minutos Joaquim cava, vasculha, remexe, e nada de valor acha. Enquanto o filme por um momento parece involuir, ou no máximo distrair, a passagem do tempo conduz uma lenta conversão do alferes ambicioso em um ser mais primitivo, gradualmente exasperado, que se debate contra a natureza, o mundo selvagem, e se sente violentado ao não ter correspondido seu sonho dourado. O retrato da frustração do Tiradentes é o de um homem à beira da loucura.

Um lance de sorte e uma dose de astúcia lhe devolvem esperança, colocando em suas mãos pedras possivelmente preciosas. O aventureiro julga ter sido enfim premiado e tenta comprovar o valor delas, mas a história nos assegura que não acertará na loteria. A fábula garimpeira do Tiradentes de Joaquim termina com os poderosos colonizadores decidindo quanto valem suas pedras preciosas. Terá sido mais uma vez passado para trás? O filme habilmente insinua essa possibilidade como uma certeza do protagonista, a quem só consolam a revolta e o sentimento de injustiça. Ao topar num quilombo com a antiga escrava de sua afeição, agora a líder de uma comunidade livre, sua revolta ganha conotações libertárias.

Completa-se então a trama de iconoclastia em Joaquim. Antes da consciência social, aquele que um dia será o "herói" da pátria tem frustrações pessoais. Sua motivação original é o interesse privado. Só depois de se sentir intimamente injustiçado, o homem do povo decide entrar na arena da política como adversário dos que julga culpados por seu infortúnio. Em seu ponto de chegada, Joaquim terá traçado a mitologia pessoal de um homem sofrido, o que não deixa de ser irônico como explicação moderna de um personagem que pinturas românticas do século 19 retratam à imagem do Jesus Cristo crucificado.

REALISMO E ENCENAÇÃO

O desenlace de Joaquim coloca o personagem de cinema no curso da história. A aproximação do alferes do grupo dos inconfidentes, no filme representados pelas figuras anônimas de um poeta e um padre, é um enigma infinito que nenhum historiador chegou perto de resolver. Joaquim aproveita a brecha e sugere a bastante plausível versão de que esse foi um processo gradativo, desenrolado muitos anos ou décadas antes da tentativa de levante contra a coroa — o filme se passa cerca de dez anos antes da Inconfidência. Isso reforça a ideia, consolidada entre estudiosos, de que o Tiradentes frequentava de longa data a elite letrada que insurgiria a fim de se livrar da crescente cobrança de impostos e das restrições que Portugal impunha à industrialização da colônia. Não é gratuita nesse momento a empolgação desmedida com que o personagem passa a ser caracterizado. Nos depoimentos integrantes dos autos da devassa da Inconfidência, o Tiradentes é não poucas vezes chamado de entusiasmado, sonhador e falador, ou seja, exaltado e imprudente. Este protótipo do atual militante é bem documentado. O alferes Joaquim foi o mais ativo dos inconfidentes, arregimentava como nenhum outro apoios à causa da independência e muitas vezes falava em público sobre o levante, sem meias palavras. Sobretudo, em meio a prostitutas e seus frequentadores nos mais bem reputados bordéis de Minas. 

Fazer o entusiasmo do alferes recém-convertido às ideias republicanas e iluministas soar como ingenuidade é um achado de Joaquim. Quando o Tiradentes, ao ser apresentado ao padre (Toledo?), comenta que as leis e princípios que nortearam a criação dos Estados Unidos lhe fazem crer que o novo país nunca irá invadir terras estrangeiras ou entrar em guerra com outros povos, o empolgado vira tolo. Um inocente útil aos conspiradores da elite rica e letrada? “Aqui está o nosso homem”, diz o poeta ao apresentar o alferes aos demais colegas inconfidentes. É curioso que esta primeira reunião imaginária dos conspiradores, com a qual Joaquim termina, seja uma contraposição total à leitura mais ousada da Inconfidência Mineira até então feita pelo cinema brasileiro. Em Os Inconfidentes, de 1972, a sensação é de ironia permanente com conspiração em si e o temperamento de seus atores principais. Em conjunto, compõem um retrato de revoltosos inconsequentes, ingênuos e um tanto quanto frívolos, o que é traduzido na opção explícita de uma representação artificializada, forjada no revoltismo poético, em recitais revolucionários e confabulações filosóficas. A mitificação iniciada pelo movimento republicano foi incorporada pelo regime militar e o que o filme de Joaquim Pedro de Andrade revela em seu clímax, na cena em que o Tiradentes é enforcado diante de crianças e adolescentes vestidos de uniforme escolar, é que o filme inteiro que acabávamos de assistir era uma grande encenação. Os diálogos de Os Inconfidentes, destacam os créditos iniciais, foram escritos a partir dos documentos da devassa. Nas entrelinhas, resta a concepção de que processos jurídicos são também encenações e por isso só podem originar versões ao menos deturpadas, para não dizer fantasiosas, da realidade.

A preocupação de Joaquim é com o realismo. O filme ambiciona espelhar uma realidade social, resulta de uma pesquisa criteriosa sobre o Brasil colônia do século 18, relações de classe, vida privada, e absorve os vestígios da biografia do personagem principal. Mas isso é o ponto de partida, o pano de fundo de uma ficção cujo propósito até pode ser desmistificar o herói, mas também não deixa de ser uma grande invenção. Não há nenhum constrangimento nisso, nem a intenção de ser historicamente preciso, mesmo porque o Tiradentes antes da fama irá para sempre pertencer, como figura humana, ao terreno do imaginário, da incerteza e da interpretação. Na que propõe, Joaquim rejeita o heroísmo romântico, caríssimo à versão oficial da vida do mártir, e busca um homem se não real ou mesmo provável, possível. 

A sugestão é provocativa e funciona por identificar o Tiradentes com o observador de uma realidade mais que verossímil, familiar: um país de oportunidades desiguais e esquemas de manutenção de poder e dinheiro. O Brasil que Joaquim espelha é tanto a colônia portuguesa do século 18 — desprovida de povo que não seja subalterno e onde prevalece uma ideia bastante difusa do que deve ser uma república democrática — quanto o país atual onde pertencer à classes médias é privilégio e o único projeto de nação em andamento é o de uma república empresarial.

O grande mitólogo moderno Joseph Campbell escreveu que as mitologias não são estáticas e evoluem com o tempo, refletindo as sociedades que as adotam e se ajustando à realidade histórica em mutação. Palavras de Campbell: "Mitos são sonhos públicos, e sonhos são mitos privados". Será o Tiradentes humanizado de Joaquim um sonho público ou um mito privado?

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Um blogue não é mais uma blague. De agora em diante é uma página assombrada, uma ilusão encontrada, um roteiro de um filme para sempre, um guia útil para uma vida fútil, uma antologia ou mitologia pessoal, uma miscelânea pouco original, uma autoentrevista, um manual passo-a-passo de uma dança imóvel, um mistério a mais no mundo, um papel avulso, uma estranha obsessão, um crime sem castigo, uma adivinhação, um pássaro de uma perna só que foi ciscar e caiu, um suspiro, um minuto de silêncio.

QUEM FAZ

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Vitor Pamplona nasceu em Barreiras, interior da Bahia, em 1981. Em Salvador, fez faculdade de direito, mas formou-se em jornalismo. Vive em São Paulo.

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