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17.10.16   Notas musicais

O Nobel de Bob Dylan: A reencarnação


Agora que a contrariedade de sentimentos, crenças ou regras morais arrefeceu junto com as animosidades provocadas pela polêmica cultural mais disseminada da semana passada, e os descontentamentos retomam o caráter inato das escolhas pessoais sem maiores consequências, peço licença a meus amigos mais espiritualizados para denunciar um caso inédito de reencarnação. O que ocorreu, cujos registros se seguem, aconteceu de verdade e dou fé. Pois pela primeira vez desde o início dos relatos históricos do espiritismo, o fenômeno envolveu um sujeito que, morto, reencarnou no mesmo dia em um vivo. 

Tirem os ímpios da sala, porque o assunto ainda é Bob Dylan. E ao contrário dos prêmios Nobel, não se fazem canções e poesia com boas intenções. Quem se esqueceu do escarcéu, atenção para o flashback a seguir:

Há muitos anos um prêmio Nobel de Literatura não causava tanta polêmica. O anúncio feito pela Academia Sueca, em Estocolmo, causou surpresa no meio literário, já que o nome nem sequer estava cogitado entre um dos prováveis vencedores. O prêmio dividiu críticos em todo o mundo. Alguns defenderam o vencedor ferrenhamente, outros o execraram. Seus detratores argumentam que sua obra não está à altura de outras obras já agraciadas com o Nobel. Houve quem dissesse que ele não tem profundidade. Seus defensores respondem que somente os que não entendem a complexidade da obra não enxergam sua profundidade.

Pausa para um café, há quem garanta ser ótimo para a memória. Cada uma das frases acima, ao contrário do que sugerem recordações imediatas, não foi escrita nos últimos dias nem falava do Nobel de Literatura de Bob Dylan. Elas estão em notas de jornal e reportagens publicadas em outubro de 1997, quando o premiado tinha sido o dramaturgo italiano Dario Fo — o mesmo Fo que, morto no mesmo dia em que Dylan ganhou o Nobel, foi saudado justamente por uma obra que retoma a literatura oral e popular, com proposital detrimento da palavra escrita. A fonte em que bebia, a mesma dos bufões da commedia dell’arte, é uma construção da Idade Média, época em que quase todos eram analfabetos e ler livros não passava de um hábito estranho, restrito a uma ínfima parcela dos humanos que se diziam alfabetizados (nem tanta coisa assim mudou nos últimos seis séculos).

A verdade é que a semana passada foi uma das mais atrasadas dos últimos tempos. Há 19 anos, a indignação contra o Nobel já tinha assumido ares de uma inquisição contra os pecadores da Academia Sueca: como puderam rebaixar a grande arte da escrita e premiar um saltimbanco, dando reconhecimento literário ao dialeto inculto usado por ele? Substitua saltimbanco por músico e dialeto por canção e os muxoxos e beicinhos dedicados a Dario Fo terão reencarnado contra Bob Dylan.

Como ocorreu ao italiano, Dylan foi vítima das idiossincrasias e corporativismo da cultura acadêmica, a guia suprema de nove entre dez editores de livros e madre superiora de aspirantes à intelectualidade mofada das academias de letras. Isso sem falar nos insultos, mais ou menos disfarçados de ironia ou mau-humor, com que bombardearam os integrantes do comitê do Nobel — e aqui o prêmio máximo vai para Irvine Welsh, que chamou a escolha de 2016 de “nostalgia mal concebida arrancada das próstatas rançosas de hippies senis e balbuciantes”. Sem apelar para relinchos e coices, um artigo da escritora e jornalista americana Anna North, editora de opinião do New York Times, lamentou o Nobel dado a um músico já tão premiado e reconhecido. A decisão implicava em desprestígio aos escritores e aos livros, sendo igualmente um desincentivo à leitura. Sua conclusão é quase irresistível: “Bob Dylan não precisa de um prêmio Nobel de Literatura, mas a literatura precisa de um prêmio Nobel. Este ano, ela não terá um”.

Acontece que estes lamentos partem de uma premissa muito específica sobre o que é literatura e o que é um escritor. Quem melhor talvez tenha desarmado esta bomba foi o veterano crítico espanhol Carlos Boyero, do El País. Com carreira ancorada no cinema, Boyero é um dos raríssimos casos na imprensa mundial de alguém com uma voz muito particular e ampla formação humanística, combinação que o libertou das amarras da crítica objetivista e lhe franqueou um espaço no jornal onde ele pode falar absolutamente do que quiser, como quiser. E falou: “Com Dylan o Nobel ganha prestígio”. Primeiramente porque foi seguindo critérios ancestrais e estritos que o Nobel, um prêmio criado pelo inventor da dinamite para compensar intelectual e financeiramente os efeitos mortais e devastadores de sua invenção, tornou-se uma das mais perfeitas traduções do sentimento de vergonha eterna ao desprezar gente como Tolstói, Proust, Kafka, Joyce e Borges, preferindo reconhecer juntadores de palavras tão medíocres que não são lembrados nem em seus próprios países.

Com Dylan, e também Dario Fo, a história é diferente. Você pode se ater às palavras impressas numa folha de papel para dar-lhes o devido valor, mas a palavra escrita é muito mais uma formalização e reprodução de uma linguagem que já era literária muito antes de o primeiro livro ser impresso. Ademais, a surpresa e a revolta despertada pela decisão de dar o maior prêmio literário a um compositor — a mesma vista no caso do dramaturgo que preferia encenar a escrever — revelam falta de intimidade ou atraso em relação à própria academia, onde Dylan há tempos é tratado como poeta.

Afinal, se não é literatura criar versos profundos e multifacetados que evocam imagens líricas, traduzem tragédias e injustiças sociais, descrevem os novos tempos transmitindo confusas sensações, buscam interpretar tanto a si mesmo quanto ao próximo, narram histórias emotivas que nunca têm final feliz, o que então é literatura? Se em meio a tudo isso há música e canção, essa forma de arte repetidamente desprezada e assassinada, é uma questão de sorte. Pois serão imagens ainda mais misteriosas, mais simbólicas, e eventualmente épicas e sensuais — pois apesar de notabilizado como autor de músicas de protesto, não faz mal nenhum lembrar que Bob Dylan escreveu também algumas das mais lindas canções de amor (I Want You, Lay Lady Lay, It Ain't Me Babe...).

Se há uma grande contradição que o Nobel de Literatura deixou evidente, não estava em premiar um compositor. Enquanto tantos escritores, literatos, críticos e editores passam a vida vendo poesia onde não há, terão agora que considerar seriamente a possibilidade de existir literatura onde não enxergavam.

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Um blogue não é mais uma blague. De agora em diante é uma página assombrada, uma ilusão encontrada, um roteiro de um filme para sempre, um guia útil para uma vida fútil, uma antologia ou mitologia pessoal, uma miscelânea pouco original, uma autoentrevista, um manual passo-a-passo de uma dança imóvel, um mistério a mais no mundo, um papel avulso, uma estranha obsessão, um crime sem castigo, uma adivinhação, um pássaro de uma perna só que foi ciscar e caiu, um suspiro, um minuto de silêncio.

QUEM FAZ

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Vitor Pamplona nasceu em Barreiras, interior da Bahia, em 1981. Em Salvador, fez faculdade de direito, mas formou-se em jornalismo. Vive em São Paulo.

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