
Sob o impacto da notícia da morte de Abbas Kiarostami, o imediato desacontecimento cinematográfico do ano, a tarefa involuntária de escanear a memória para reencontrar seus filmes acaba se transformando na história de como seu cinema austero e majestático entrou no olimpo pessoal onde vivem para sempre nossos cineastas afetivos. Desaparecido Kiarostami, enxerguei a capa do DVD de Através das Oliveiras na prateleira da locadora de vídeo, voltei à antiga Sala de Arte do Bahiano em Salvador, onde passava Gosto de Cereja, lembrei de ter escrito com hidrocor em CDs graváveis os títulos de Onde fica a Casa do Meu Amigo? e Close-Up, e continuei até parar na sessão de Um Alguém Apaixonado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que uma década antes havia praticamente introduzido Kiarostami no Brasil. De volta ao presente, não resisti ao silêncio da madrugada e embarquei de novo na máquina do tempo que são os filmes que carregamos, desta vez com o luxuoso auxílio dos torrents.
Algo impressionante aconteceu pela manhã. Ao acordar, lembrei de frases de Kiarostami lidas em entrevistas. Numa ele explicava por que não deixava de vez o Irã, alegando que fazer cinema era tão difícil em seu país natal quanto em qualquer lugar do mundo. Noutra dizia que a invasão do cinema industrial americano era mais perigosa do que uma invasão do Exército americano. E numa aula que expunha um enorme sentido histórico de cinema, falava como via a evolução da linguagem sob a perspectiva da influência da realidade: que a primeira geração de cineastas olhava a vida para fazer os filmes; a segunda geração fazia filmes após olhar a vida e os filmes feitos antes; a terceira geração só olhava para os filmes; e que a quarta geração era movida pelo desafio de usar novas tecnologias, que acabavam moldando totalmente seu trabalho.
Aprendemos a conhecer Kiarostami vendo seus filmes, é claro, que recuperam o sentido do cinema como instrumento de conhecimento, mas o conhecemos profundamente também por meio de suas palavras. É quase profético encontrar numa de suas entrevistas uma inesperada resposta para uma pergunta sobre os diálogos que, em seus filmes, soavam tão banais que pareciam não ter sido previamente escritos no roteiro. Ao invés de desprezar o texto e se gabar de ser um grande improvisador, Kiarostami contesta: “Às vezes as palavras te tocam de uma forma que a imagem não consegue. Uma mulher que está se divorciando do marido falava outro dia que ele nunca disse “te amo”, e todos lhe dissemos que isso não faz falta, que se vê que ele a ama, mas ela não se consola: precisa que isso seja dito.”
Kiarostami garantia que não inventava nada em seus filmes, nascidos sempre de acontecimentos reais. Via a si mesmo mais como um colecionador do que um criador de histórias. Era um grande narrador minimalista, com profundo senso de duração do plano, o chamado tempo de corte. Mas ao poucos essa figura do contador sugestivo, que aponta a câmera para o quase imperceptível e irrelevante, foi lhe interessando menos em filmes mais experimentais, em que o narrador quase desaparece. De Close-Up a Dez, até chegar em Shirin, a reflexão sobre a simulação, o ficcional e o documental foi ganhando contornos de uma busca obsessiva por elementos essenciais do cinema e da arte, como a participação do espectador, coautor sem o qual a obra não se completa, e a função da representação.
Por isso talvez seu maior filme tenha sido mesmo Cópia Fiel. A história envolvendo o professor inglês que defende que a cópia tem valor igual ao da obra de arte original aparenta ser apenas uma maravilhosa reflexão sobre a arte na era das reproduções, mas ganha uma dimensão muito maior com o casal que, ao fingir um casamento, copia uma experiência de vida que não teve. Disso resulta um tipo de iluminação, na qual Kiarostami explica a importância da representação não só no cinema ou na arte, mas na cultura. Cópia Fiel é uma espécie de teoria geral sobre o ato de fingir. Representando, a ficção faz a gente experimentar sentimentos que talvez nunca teríamos, e assim é que a gente aprende a viver.
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