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27.1.16   Crônicas sem castigo

A invenção do parafuso



O computador deixou de ser um empecilho na vida de Norma quando ela finalmente entendeu como tratar o touchpad. Três meses de esconjuros, palavrões repetitivos e insultos sem resposta até que enfim parou de praguejar após ser salva pela Wikipédia: “O touchpad é um dispositivo sensível ao toque, utilizado em computadores portáteis, para substituir o mouse, e realmente tem a função de substituir o mouse, utilizando células sensíveis ao toque”. Norma riu por quase uma hora e teve a convicção de que os computadores eram fabricados por idiotas.

A máquina a fez saber da existência do chileno Hernán Letelier, cuja relação com os computadores e o mundo virtual ainda está envolta em mistério e fascinação. Aos 95 anos, o ator e autor, em algum lugar do passado uma glória do teatro musical no Chile, se tornou no início do mês provavelmente o mais velho usuário do Twitter. Solteiro e sem filhos, com seus velhos companheiros todos mortos e restando só a presença cotidiana da gata Martina, foi convencido por uma boa alma a abrir uma conta contra a solidão. Refletiu por dias a fio e, inseguro por jamais ter usado um PC na vida, ditou seu primeiro e comovente tuíte em um device mais familiar, o telefone. “Será comum um homem de 95 anos abrir conta no Twitter? Tenho desejo de me conectar com o mundo”, explicou em sua mensagem de apresentação. Outro dia anotou: “Descobrindo o YouTube. Isso é mágica!”. Como a imprensa ainda tem alguma utilidade, a história correu mundo e milhares de tuiteiros se apressaram para ouvi-lo, buscando por @Letelier1920.

Egresso da civilização do papel, don Hernán propôs a seus seguidores uma tarefa: dizer que livro estavam lendo e por quê. Se não estavam, por que não? Analisou as respostas: “Muita literatura contemporânea e pouco clássica”. E aconselhou que se pudessem ler só alguns livros na vida, que lessem Shakespeare, Dom Quixote e os russos do século 19. O encantamento com a nova invenção não abalou sua visão de mundo, segundo a qual é inútil viver sem a companhia dos clássicos. Os anos passam, só o essencial não passa. Locomotiva a vapor, automóvel, rádio, telégrafo, gramofone, telefone, rede elétrica, câmera fotográfica, câmera de filmar, avião, televisão, geladeira, lava-louças, torradeira, cafeteira, fita K7, walkman, computador pessoal, laptop, computadores em rede, smartphone, smart TV, smartlife. O que permanecerá? O parafuso.

Olhe em volta. É impossível mudar o mundo e prescindir do parafuso. Da cadeira ao satélite em órbita, tudo depende dos parafusos. O mundo que nos cerca só não desmonta por causa dos parafusos. Vejam e leiam os parafusos.


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Sobre

Um blogue não é mais uma blague. De agora em diante é uma página assombrada, uma ilusão encontrada, um roteiro de um filme para sempre, um guia útil para uma vida fútil, uma antologia ou mitologia pessoal, uma miscelânea pouco original, uma autoentrevista, um manual passo-a-passo de uma dança imóvel, um mistério a mais no mundo, um papel avulso, uma estranha obsessão, um crime sem castigo, uma adivinhação, um pássaro de uma perna só que foi ciscar e caiu, um suspiro, um minuto de silêncio.

QUEM FAZ

QUEM FAZ
Vitor Pamplona nasceu em Barreiras, interior da Bahia, em 1981. Em Salvador, fez faculdade de direito, mas formou-se em jornalismo. Vive em São Paulo.

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