
Em 2 de janeiro de 2001, em uma entrevista publicada na Folha de S. Paulo para anunciar o lançamento de seu filme Bolandeira (que só entraria em cartaz mais de um ano depois com o nome Abril Despedaçado), Walter Salles deu início a uma campanha particular que denunciava “a maneira como o cinema americano não só trivializou a violência, mas conseguiu dissociar a dor e o sofrimento da ideia da morte”. O grilo era Hollywood tratar a violência como entretenimento ao invés de exibi-la em “estado bruto”.
Dois anos e meio depois, Walter Salles continuava montado em seu cavalo de batalha e assinou um artigo em que retomava o assunto. Desta vez o alvo não era só o cinemão americano, como já indicava o título, “Irreversível e o cinema do explícito”. A bronca maior era com a explicitação gratuita da cena do estupro da personagem de Monica Bellucci no filme do franco-argelino Gaspar Noé, que dez anos atrás chegou a impressionar os impressionáveis (copyright Inacio Araujo). Mas logo na primeira frase o texto acusa: “O divisor de águas talvez tenha sido Pulp Fiction, de Tarantino. Três amigos discutem dentro de um carro em movimento. Uma arma dispara acidentalmente. O jovem negro sentado no banco de trás é atingido. Miolos voam para todos os lados. Os dois outros sujeitos riem. Um problema grave é debatido: como limpar o carro?”. A descrição irônica da sequência evoca o pecado original de Quentin Tarantino segundo os evangelhistas do cinema da superioridade moral: sua adesão à violência glamourizada, estilizada, divertida. Pervertida em entretenimento. “Cool”.
É evidente que a violência estilizada não é uma invenção de Quentin Tarantino nem uma exclusividade do cinema americano. Charles Chaplin estilizou a violência em nome do riso, ridicularizando suas consequências em lutas inofensivas. O Cinema Novo estilizou a violência, exaltando a crueldade em nome de efeitos didáticos para transformar espectadores em revolucionários. O western spaghetti estilizou a violência, despedaçando a ação em fragmentos de tensão e estendendo sua duração psicológica ao máximo. Se Tarantino pecou foi por desprezar o efeito de banhos cenográficos de sangue e miolos espalhados no interior de carros em mentes que ignoravam por inteiro a existência e a popularidade dos videogames, desenhos animados e brincadeiras de polícia e ladrão.
Não por ser “tonto y grave” (tolo e carrancudo em bom português), mas por achar que faltava a seus primeiros filmes uma verdade interior que refletia um criador, nunca dei muito cartaz ao antigo balconista de locadora de vídeos. Tirando a chalaça de Jackie Brown, só foi com Bastardos Inglórios que saí do cinema sem nenhuma restrição ao que tinha visto. Um nova dimensão surgiu com Django Livre, obviamente não tão bem acabado nem tão ressonante quanto seu antecessor, o que não significa menosprezá-lo. Tudo que um filme precisa é acertar o alvo que escolhe para si, e Django acerta na mosca, mas o filme tem como adicional uma absoluta novidade na carreira de Tarantino – violência em “estado bruto”, aquela mesma que dez anos antes lhe foi cobrada como requisito para ser aprovado nas aulas de moral e cívica.
Mais significativas do que a falsa polêmica sobre o racismo incubado que alguns viram no filme e o uso da palavra “nigger”, ofensiva nos Estados Unidos, são as formas distintas como a violência é exposta em Django. Tarantino não abandona a estética que lhe deu fama, reconhecimento e dinheiro ao consumar a vingança do escravo emancipado interpretado por Jamie Foxx contra seus carrascos. O espetáculo dos jatos de sangue e chuvas de balas está cada vez mais aperfeiçoado pela turma da maquiagem e dos efeitos visuais. Mas, quando mostra as atrocidades da escravidão, Tarantino não diverte. Não há nada “cool” quando o chicote açoita os negros escravizados. O sangue não jorra. Os projéteis não ricocheteam. O ato de crueldade não é visualmente explícito. Está no barulho do latido dos cães incitados por um capitão do mato a devorar um homem vivo, na expressão de dor no rosto em close da heroína Brumhilde, nas contorções e no suor ensanguentado decorrentes do esforço sobre-humano dos corpos dos lutadores que precisam matar seus pares com as próprias mãos para satisfazer a extravagância de senhores racistas e violentos como o interpretado por Leonardo DiCaprio.
O desconforto que isso provoca é notável e muita gente não consegue assistir a cenas, verdadeiramente, de tortura. Não consigo imaginar como um diretor tão consagrado ao espetáculo da violência pudesse ser mais, por que não dizer, responsável. Ao diferenciar a violência cenográfica que reinventa e reescreve a história para fazer justiça pelas mãos de Django e do Dr. King Shultz da violência real sofrida pelos escravos americanos, Tarantino dá um xeque-mate duplo, tanto em quem o acusa de racista quanto em quem o hostiliza por trivializar a violência. Sua estética tradicional, a do sangue que espirra e das mortes acrobáticas, se choca com o realismo controlado e metódico das sequências em que os negros escravizados são massacrados. Da diferenciação emerge um cinema extremamente ético, que não ignora atrocidades históricas e coloca o sofrimento em oposição à diversão. Sem ser professoral, Django Livre dá uma aula de estética traduzida em ética. Melhor: uma aula prazerosa e subversiva, que põe um ponto final ao reclame de que o cinema de Tarantino trivializa a violência, dissociando a dor e o sofrimento da ideia da morte. Ninguém trivializa a violência quando brinca de bangue-bangue, mas a dor sentida na pele é real quando alguém se machuca.
2 comentários
Lembrei daquela frase de Godard (?) a propósito de 'Kapo', o filme de Gillo Pontecorvo: "um travelling é uma questão de moral".
ReplyE a montagem também, alguém poderia dizer pensando na Lista de Schindler e no "suspense" da câmara de gás. Saudações ao blog!
Texto citado por emigrados paulistas ontem na Mouraria!....vim conferir e não tiro uma virgula!!..Abraços meu caro!
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