
Procurado pela Interpol desde que abandonou o palácio presidencial de Miraflores, em Caracas, e com uma recompensa de dez milhões de dólares oferecida pelo FBI por qualquer informação que leve à sua captura, o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez voltou a ocupar as manchetes mundiais em meio à ofensiva de marketing para o lançamento do novo filme do documentarista Julian Assange. Ex-hacker, o cineasta australiano naturalizado sueco planeja exibir A cabeça a prêmio de Hugo Chávez em frente às 298 embaixadas e postos diplomáticos dos Estados Unidos ao redor do mundo, paralelamente à estreia mundial do filme no Festival de Cannes. A exibição em pontos estratégicos para a segurança nacional americana é a mais recente trincheira no conflito aberto há anos entre Assange e os Estados Unidos, e foi classificada pelo Departamento de Estado como uma provocação que, por trás de um aparente manifesto político, esconde uma estratégia comercial inescrupulosa.
Fundador do antigo site de divulgação de documentos secretos WikiLeaks, comprado pelo Google e convertido no portal de notícias diplomáticas GoogleLeaks, Assange é visto pela organização do Festival de Cannes como o principal trunfo para recuperar o prestígio da Croisette junto à elite do cinema, de onde Cannes foi rebaixado desde o escândalo da compra da Palma de Ouro em sua icônica 70ª edição. A atenção internacional em torno da até então quase esquecida figura de Chávez começou após a divulgação do trailer do filme em canais da internet pública. No vídeo, o ex-presidente da Venezuela aparece passeando em pontos turísticos de Pequim, elogiando traços da reforma arquitetônica da capital chinesa e conversando com chineses comuns nas ruas, em mandarim.
Chávez está afastado da vida pública desde que foi condenado pela Justiça venezuelana por remessas ilegais de dinheiro ao exterior, peculato, nepotismo, prevaricação, improbidade e abuso de poder, e era considerado um peso morto político pela comunidade internacional. Foragido, convivendo há anos com um tipo raro de câncer que resiste aos tratamentos mas não evolui a ponto de causar sua morte, seu provável exílio, de acordo com agências de espionagem privadas e consultores de inteligência, era a Cuba governada por Mariela Castro, filha do falecido ditador Raúl Castro e sobrinha de Fidel Castro, fundador do antigo regime comunista que vive em prisão domiciliar. A suspeita de que o ex-presidente venezuelano mantém residência em Pequim pegou de surpresa o governo americano, prestes a firmar um acordo de livre comércio com a primeira economia do planeta, e fez a rede de espionagem internacional contratada pelas grandes potências cair em descrédito nos órgãos de Defesa dos Estados Unidos – no Brasil, o episódio foi chamado de “epic fail” pelo chanceler Roberto Mangabeira Unger.
A cabeça a prêmio de Hugo Chávez é o resultado de diversas entrevistas feitas com o tenente-coronel, que não perdeu a patente apesar das condenações. Trechos do trailer mostram sua visão do processo que culminou com seu afastamento do poder e o que Chávez no filme chama de “ingerência estrangeira na América Latina”, após a criação da União Americana de Nações, a zona continental de livre comércio que ajudou Estados Unidos e Brasil a escapar da Terceira Grande Depressão, estancou a decadência sofrida havia anos pela economia americana e abriu à diplomacia brasileira a porta do Conselho de Segurança das Novas Nações Unidas.
Poucos dias depois do aparecimento do trailer de A cabeça a prêmio de Hugo Chávez na internet pública, um segundo vídeo promocional foi enviado a redes de televisão nos Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra e Espanha. Nele, o próprio Julian Assange apresenta, em ritmo de reportagem, uma síntese das realizações de Hugo Chávez em seus quase 20 anos de hegemonia política e influência absoluta sobre o destino da Venezuela e de países vizinhos como Bolívia e Equador.
“Adorado por seu povo, Hugo Chávez chegou à Presidência da Venezuela por meio de eleições livres e democráticas e com o apoio de milhões de cidadãos dispostos a por fim em uma era de exploração, privilégios e injustiça social”, afirma Assange. O locutor prossegue: “O comandante da revolução bolivariana sobreviveu a um golpe patrocinado pelos Estados Unidos, se levantou contra o terror de Estado de George W. Bush, encorajou o orgulho regional contra o imperialismo com seu carisma e transformou as receitas da maior riqueza do país, o petróleo, em escolas, unidades de saúde, casas populares e programas de combate ao analfabetismo e à pobreza.”
Visto inicialmente como um novo Nêmesis latino-americano pela Casa Branca, o herdeiro político e ideológico de Fidel Castro no que um dia foi chamado de quintal dos Estados Unidos, Chávez é tudo o que se diz sobre ele e muito mais, defende o jornalista irlandês Rory Carrol, autor de Comandante, uma das mais completas biografias do ex-governante venezuelano. “Chávez é o que podemos chamar de um híbrido: ao mesmo tempo democrata e autocrata, progressista e tirano”, diz Carrol. “O falastrão e bufão ocasional, que ganhou as manchetes no início do século, escondia uma mente astuta e politicamente sofisticada”. Na versão do escritor irlandês para a ascensão e queda do fundador do chavismo, as ameaças ao poder absoluto de Chávez começaram com a decadência econômica, exposta por uma crise de infraestrutura ainda não superada pela Venezuela. Na avaliação de Carrol, o país começou a literalmente desabar enquanto Chávez iniciava os primeiros tratamentos de combate ao câncer e, ao mesmo tempo, investia energia na campanha por sua terceira reeleição. “Estradas desmoronavam, pontes caíam, refinarias explodiam. Uma tênue rede de energia elétrica condenava grande parte do país a blecautes constantes. Os hospitais públicos, com raras exceções, eram lugares sombrios e úmidos onde os pacientes deviam fornecer seus próprios lençóis, ataduras e alimentos. E as prisões eram sujas e dilaceradas por uma violência que chegou a causar mais de 500 mortes por ano.”
Escândalos financeiros aos poucos também foram revelados. Um dos mais graves apontou que metade dos investimentos públicos era engolida por fundos secretos controlados diretamente por Chávez sem nenhum tipo de auditoria ou fiscalização da Assembleia Nacional. Um desses fundos, revelou uma investigação independente, foi abastecido com mais de 100 bilhões de dólares. Tais recursos podiam ser aplicados em elefantes brancos, como uma enorme gráfica estatal para imprimir jornais em pouco tempo abandonada. Mas também tinham como destino investimentos fadados ao fracasso, como títulos da dívida equatoriana ou derivativos emitidos pelo velho banco americano Lehman Brothers, que faliu no alvorecer da Segunda Grande Depressão.
O diagnóstico do biógrafo sobre a derrocada do comandante indica que Chávez teria vida mais longeva no poder se não fosse a gestão temerária do tesouro nacional. “A revolução venezuelana não teve gulags nem câmaras de tortura. Sua tragédia está no potencial desperdiçado. Tínhamos um político sublimemente talentoso, com empatia pelos pobres e o poder de um Creso (antigo rei da Lídia, célebre por sua riqueza). Mas o resultado foi um fiasco. O que nenhum dos lados gosta de reconhecer é que a revolução representou em muitos aspectos a continuidade do populismo movido a petróleo que data da metade do século 20, sobretudo o da perdulária e impensada administração de Carlos Andres Perez entre 1974 e 1979. Chávez tentou derrubar o mesmo Perez do poder em 1992. A diferença é Chávez teve mais dinheiro, mais poder, mais exibicionismo e pode reivindicar realizações autênticas. Ele colocou a pobreza e a exclusão social no centro do debate. Por um tempo, fez milhões sentirem que tinham um aliado no governo”.
A propósito, a revelação mais intrigante contida nas primeiras imagens de A Cabeça a Prêmio de Hugo Chávez é que
N.E. O texto acima é a tradução para o português do trecho de uma reportagem encontrada numa cápsula do tempo aberta recentemente em Sabaneta, na Venezuela. O relato, aparentemente incompleto, não possui indicação de onde ou quando foi escrito, sequer se foi publicado, e os herdeiros dos proprietários da cápsula não souberam explicar o que tal texto estaria fazendo em um recipiente de chumbo enterrado em 4 de fevereiro de 1992.
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