Nem todo mundo tem o vizinho que merece. Por obra do acaso, há quem construa seu lar, doce lar, a um hall de elevador de distância de uma vizinha que sempre tem uma xícara de açúcar a oferecer, ocasião em que é essencial manter o lar desprovido de mantimentos. O caso é um clássico das comédias românticas ou dos programas de humor, e o inverso, vizinho abastecendo o café da vizinha, também é uma fantasia açucarada. Clássico é clássico e vice-versa (apud Jardel).
Tenho pouco a contribuir pessoalmente para o imaginário coletivo das relações urbanas. Desconfio que o mesmo ocorra com quase todo mundo. Às vezes um pano fica suspenso ao som de um bom dia, boa tarde, boa noite. Tomar a iniciativa, nesses casos, pode ser uma atividade de risco, interpretada como uma declaração de conflito de interesses, ponto de partida de um espetáculo tensamente diplomático. Silêncio. A resposta não vem. O pano cai.
O inimigo pode morar ao lado por uma questão de instinto ou necessidade. Em último caso, é preciso considerar a possibilidade do ladrão de galinhas viver ao lado do galinheiro. Mas nada se compara a ter como vizinho um cão de guarda, treinado e obcecado em proteger o que quer que ele considere galinhas. Tive a sorte de vir parar numa vizinhança em que o cão de guarda é mesmo um cão. Mais exatamente um beagle enorme, bastante simpático à primeira vista, mas tão traiçoeiro quanto aquele vizinho que escolhe quando responder um cumprimento e deixa todos os outros hesitantes em seguir princípios básicos de convivência social.
O beagle da minha rua leva para passear uma senhora japonesa, que provavelmente não nasceu no Japão, mas isso não faz diferença para alguém que usa um chapéu de palha modelo lavrador pré-dinastia Meiji. Ela parece ser quase tão simpática quanto o cachorro, e até hoje nada tenho a dizer em contrário. Justamente por isso, não vi por que não cumprimentá-la na primeira vez em que tive o azar de cruzar com ela na mesma calçada. A senhora japonesa, a quem prefiro chamar assim para evitar genealogias desnecessárias, vinha com passos curtos, em consideração a uma provável osteoporose e ao focinho do cachorro, que buscava distrair-se com os cheiros da rua e, quem sabe, algum inseto visitado pela desdita.
Ao me aproximar e perceber que ela também tencionva dizer um olá, decidi deixar aflorar o cavalheiro que mora em algum lugar em mim. “Boa tarde”, disse eu. A senhora não ouviu, ou fingiu que não ouviu. O beagle, ao contrário, adotou a diplomacia canina e avançou sobre minha perna. Voltei para casa com tatuagens de ambos seus dentes caninos, só chamados assim porque o anatomista que os batizou era pouco simpático a uma penca de animais mais bem dentados. Julguei considerar a mordida o resultado do instinto do meu vizinho canino, desacostumado com sinais de educação vindos de estranhos. Erro de cálculo: dias depois, ao cruzar por falta de sorte o caminho da senhora japonesa e do senhor beagle mais uma vez, evitei até mesmo aquele movimento de cabeça que denuncia um cumprimento indiferente. Mas não teve jeito. O cachorro avançou sobre mim arrastando consigo a frágil japonesa. Escapei no reflexo.
Não consigo imaginar o que fiz ao pobre diabo de quatro patas para ele me odiar tanto. A realidade é que nos tornamos inimigos sem eu saber direito por quê. A mesma calçada é pequena demais para nós dois e toda vez que nos encontramos preciso guardar uma distância regulamentar a fim de não voltar para casa com as calças furadas. Quem escreveu que o homem é o lobo do homem não devia ter um cachorro na vizinhança. Quem disse que o cão é o melhor amigo do homem não conheceu a mandíbula do beagle da senhora japonesa. Da próxima vez que encontrá-la, vou perguntar se o cão aceita uma xícara de café.
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