Hora Prima
  • Twitter
  • Instagram
  • Facebook
8.5.12   Ilusões políticas

As Pirâmides


Ainda sob risco de se tornar um longo e tenebroso inverno, a Primavera Árabe alimentou no Egito o apetite pela exposição. A cultura islâmica e o aiatolá Khamenei advertem que o desejo de se exibir é um sentimento ocidental, de implicações perigosas e, portanto, a ser evitado. Noves fora dogmatismos e a interpretação política de conceitos religiosos, os imãs não estão errados. O fim da vergonha, do acanhamento, do decoro e do recato ameaça seriamente a sobrevivência da cultura islâmica tradicional. De maneira que tenho a impressão de que a revolução egípcia, que pode ou não se consolidar a depender do resultado da eleição presidencial de 23 e 24 de maio, não será decisiva para ocidentalizar o mundo árabe só por causa das ideias de democracia e liberdade, ou pelo surgimento de uma cultura eleitoral, mas sobretudo por cultivar em uma sociedade ainda muito fechada e tradicionalista o desejo da exposição pública.

Isso tem relação tanto com a manifestação do descontentamento político quanto com as mudanças na vida social e privada. Quando se vive de alguma forma enclausurado, exibir-se é libertar-se, desde que não seja para expor o vazio. O caso do Egito não é, obviamente, o da exposição ao vácuo. O país é o motor cultural do mundo árabe e décadas de repressão moderada, comparada à imposta em alguns de seus vizinhos, fizeram com que muitos egípcios não bitolados pelo Islã pudessem observar por uma fresta de bom tamanho o que a vida ocidental era capaz de oferecer: a promessa da liberdade individual total, que os círculos mais intelectualizados ou mais endinheirados procuraram reproduzir na medida do possível. Mas como a liberdade de expor a própria vontade tinha limites bem definidos – o convívio íntimo, as universidades liberais e toda a privacidade que o dinheiro pode comprar – os egípcios acabaram percebendo o significado e o valor da manifestação pública depois dos vizinhos terem mostrado que havia uma audiência mundial para sua exibição explícita. Dos relatos internéticos no Facebook e no Twitter, direto das ruas, praças e campos de batalha revolucionários, às grandes reportagens na afaimada imprensa ocidental, o Egito teve seu annus mirabilis registrado com drama, épica e força – muitas vezes bruta.

Mubarak, o ditador de gênio militar e prestígio de estadista do outro lado da fronteira com Israel, é hoje um preso político senil à espera da humilhação final que será sua condenação por corrupção e mando de assassinatos. Mas pelo fato do Egito ser o lar de uma sociedade muito mais complexa, rica e multifacetada do que as demais vitrines da Primavera Árabe, o que dificulta os consensos mas também protege contra os radicalismos, a velha ordem dos militares sobrevive no país como se estivesse conservada em um sarcófago, protegida numa câmara secreta imune às intempéries e vedada ao ar da superfície. Não deixa de ser uma tragicômica ironia o fato de que o principal espelho dessa ordem de coisas, que reflete e reproduz diariamente o passado e ofusca o futuro na terra dos faraós, chame-se “As Pirâmides”, “Al Ahram” em árabe. Pois é assim, com um título que parece retirado das Aventuras de Tintim, que se chama o principal jornal do Egito, referência linguística para a escrita do idioma árabe desde sua fundação, em 1875, e controlado desde então pelo maior empresário do país: o próprio governo.

Refúgio da visão de mundo oficial e militarizada dos poderosos, embora sua versão semanal publicada em inglês seja mais arejada e menos partidária, “Al Ahram” continua a reproduzir e simbolizar o mandato imperativo dos generais. É o arauto do regime, que publica a íntegra de novas leis aprovadas pela Junta Militar depois de passarem pelo simulacro de Parlamento, agora dominado pelos islamitas. “Al Ahram” poderia ser só mais um diário oficial e reportar cerimônias palacianas, encontros mais ou menos republicanos e declarações para Barack Obama ver, mas o periódico número um do Egito aspira mais. Quer continuar a ser o que sempre foi: o único autorizado a exibir o Egito aos egípcios. Nada mais apropriado, portanto, do que produzir a informação essencial para se viver no Egito. Daqui 100 anos, o pesquisador que se propor a fazer a arqueologia da revolução a partir das páginas de “Al Ahram” vai encontrar um monte de loas aos militares e um punhado de reações à troca de guarda no comando do país. Nada disso o surpreenderá, e não deixará de ser um pouco ridícula a tarefa de comparar o jornal com outros do exterior.

Em compensação, algumas notícias vão expor magnificamente a arte de entortar palavras a fim de modificar a realidade. Na imperdível sessão de Patrimônio – “Al Ahram” tem um editoria inteira dedicada aos assuntos do Egito Antigo e Império Árabe – o incêndio que atingiu o Instituto de Ciência Egípcio durante uma onda de protestos no Cairo mereceu a seguinte manchete: “Instituto de Ciência Egípcio intacto apesar do fogo”. Lendo a matéria, descobre-se que o incêndio levou ao desabamento do teto do primeiro e do segundo andar do prédio, bem como de janelas e arcadas. As paredes internas também foram destruídas. Mas as de sustentação (a casca) foram preservadas, isto é, ficaram intactas. A tumba pilhada de Tutancamon está melhor conservada. O faraó menino, por sinal, foi durante os meses da revolução um dos destaques nas páginas culturais. A turnê mundial do seu sarcófago e objetos sagrados deixados no sepulcro real foi acompanhada em sua passagem pela Alemanha, França, Inglaterra, Estados Unidos e Japão, cujos representantes, por uma questão cronológica, receberam a apropriada alcunha de “delegação samurai”. Poucas notícias, porém, mereceram mais festejos do que a reabertura, em março deste ano, da estupenda Avenida das Esfinges, que no Egito Antigo ligava o templo de Luxor ao de Karnak e tinha 1.350 esfinges em suas margens – 650 foram encontradas e recuperadas. Com 2,7 quilômetros de extensão, a estrada não é nenhuma Via Ápia, mas dava para o gasto no tempo dos faraós.

No mais, primeiras páginas incluídas, “Al Ahram” costuma trazer poucas novidades para os egípcios. Hoje mesmo, está lá o Conselho Eleitoral brigando com o Parlamento para saber quem manda mais nas eleições. Sempre há uma ou outra foto do marechal Tantawi, chefe da Junta Militar, brincando de chefe de estado e, quem sabe, uma troca de farpas entre a Irmandade Muçulmana e os salafistas, ambas facções cujo poder é indesejado pelas Forças Armadas. Num ponto, porém, “As Pirâmides” bate todos os jornais e sites brasileiros. Jamais, em hipótese alguma, chamou o chefe do governo militar de “general Field Marshal Mohamed Hussein Tantawi”, incorporando a patente em inglês, Marechal de Campo, ao nome do distinto comandante. Também no Egito, mate o homem, mas não mude o nome. O erro pode ser mortal, e a notícia não sairá no “Al Ahram”.

Comente:

Assinar: Postar comentários ( Atom )

Sobre

Um blogue não é mais uma blague. De agora em diante é uma página assombrada, uma ilusão encontrada, um roteiro de um filme para sempre, um guia útil para uma vida fútil, uma antologia ou mitologia pessoal, uma miscelânea pouco original, uma autoentrevista, um manual passo-a-passo de uma dança imóvel, um mistério a mais no mundo, um papel avulso, uma estranha obsessão, um crime sem castigo, uma adivinhação, um pássaro de uma perna só que foi ciscar e caiu, um suspiro, um minuto de silêncio.

QUEM FAZ

QUEM FAZ
Vitor Pamplona nasceu em Barreiras, interior da Bahia, em 1981. Em Salvador, fez faculdade de direito, mas formou-se em jornalismo. Vive em São Paulo.

Tags

  • Crônicas sem castigo
  • Estranhas citações
  • Ficções avulsas
  • Filmes para sempre
  • Foto-mistério
  • Ilusões políticas
  • Notas musicais
  • Páginas assombradas
  • Sem mais por ora

Contato

Nome

E-mail *

Mensagem *

Template by Templateism | Templatelib