Hora Prima
  • Twitter
  • Instagram
  • Facebook
20.10.11   Ficções avulsas

Açougue ideal




Ao meio dia, já recostado na cadeira de balanço, acarinhava a barriga com os calos da mão. Desmaiava devagar, em repulsa ao ar pesado que lhe comprimia o corpo sobre o vime envernizado progressivamente pelo suor das costas. O telefone tocou, obrigando-o a se desgrudar do encosto. Apoiado nos braços da cadeira, levantou e pôs-se a caminhar na direção do som. Mal retirou o aparelho do gancho e pôs o fone no ouvido, disseram: Chegou mais um. Pode vir.

Depôs o fone num misto de resignação e impotência. Era a dor cotidiana de viver naquele ambiente imundo, fedorento, lambuzado de sangue e de vísceras em todos os cantos, em torno daqueles homens quase sempre muito sujos, quase sempre muito rudes e que, assim como ele, tinham sempre um serviço qualquer a fazer. Que vida mais besta, pensou, sair pra rua, pegar os sacos, carregá-los nas costas, entregá-los nos locais combinados, receber o dinheiro, repassá-lo ao chefe, que descontava a sua parte, dar um até logo, quando precisar de mim é só ligar, gastar uma parte a caminho de casa em um bar ou padaria, dependia da necessidade, rodar a chave na fechadura, bater a porta e repetir o movimento em sentido contrário, e pronto, começar tudo de novo quando lhe fosse requisitado. Vestiu no corpo a camisa amarrotada que lhe iria sorver o suor. Que desperdício pegar uma limpa na mala, logo estaria manchada de amarelo, cor do sangue seco de sol. Seria melhor trabalhar sem roupa nenhuma, pelo menos só teria que lavar a si próprio. Pensava na cara do povo quando visse aquele homem pelado andando na rua com aqueles sacos imensos, o brilho rubro das costas misturado ao do suor, haveria de ser muito engraçado o povo todo apontando o dedo e ele tranquilo em sua nudez desavergonhada, recebendo o dinheiro e depois voltando para casa. Bom mesmo seria não ter mais que esfregar seus trapos no tanque, vendo escorrer na água o líquido vermelho que lhe causava tanta repulsa. Ninguém podia carregar sobre o corpo o sangue dos outros.

Enquanto atravessava na rua a atmosfera do meio-dia, o sol castigando-lhe o couro de cabelos ralos, subitamente lembrou do seu primeiro dia no açougue: seus olhos aterrorizados diante do cenário grotesco, inimaginável até então, mas que se expunha incólume num plano-sequência irrefreável. Prostrado em frente ao balcão, ao lado do refrigerador vazio que aparentava nunca ter sido usado, ouvia o corte das serras atravessando o osso, o fio fino das facas rasgando a carne, o rangido dos ganchos sustentado as talhas. O chefe veio e o chamou para o lado de fora, onde um novo carregamento havia recém-chegado. Explicava-lhe o serviço, dizia-lhe o sim e o não, com um palavreado firme, decidido, seguro de suas atribuições de comandante geral e, por isso mesmo, invejável. Mas no momento em que destrancaram o caminhão-baú, toda a beleza daquele discurso se esvaiu no farfalhar de moscas que rodeava a carga.

Corpos empilhados, marcados por um ferimento profundo no crânio, o que lhes dava uma fisionomia em comum, sujos de terra e lama, como que retirados de alguma pocilga em lugar dos porcos. Fora afastado um pouco para que um jato d'água lhes fizesse a última higiene e espantasse as moscas mais insistentes. Um a um, os cadáveres iam sendo rolados para as carretas sobre trilhos que os levariam ao beneficiamento. Esse movimento lhes revirava as faces, descerrando as bocas de onde escorria a saliva derradeira misturada aos líquidos gástricos, revelando olhares moucos sob pálpebras entreabertas, e rompia os coágulos das chagas no crânio, pintando de vermelho os rostos dos primeiros e o tronco e tudo o mais dos seguintes.

O chefe gritou da porta que engolia os carretos: Ô, novato! Venha ver como é aqui dentro. Mal pisou no chão rejuntado com azulejos brancos que cobriam também as paredes do galpão, pôde ver dezenas de homens de dorso nu, ocupados em transportar, despelar, desviscerar, desmembrar, retalhar e embalar. Primeiro, retiramos as pelagens e as pelancas, esses bichos às vezes têm quase um palmo de gordura cobrindo o corpo, ensinou o chefe. Ninguém come tamanha quantidade de sebo, mas sempre é bom deixar algum na fibragem, pois o gosto do gado é o gosto da gordura quando tosta, e aqui é tudo gado, o chefe riu. Depois, é preciso desembuchar, que é pra livrar eles da bile, dos fatos e das vísceras malcheirosas. Nem cachorro come. Aí começa a parte técnica, que é quando se separa as partes nobres das ordinárias. Os quartos traseiros é só serrar o joelho e pendurar no pacote, o lombo é fatiado porque vai em bandejas, peito a gente só trabalha com os de fêmea, os de macho é muito trabalho pra pouco ganho, costela é tudo igual, e tem os miolos, coração, os bagos, que são selecionados só para clientes especiais, de tradição com a casa. É gente de hábito refinado, que não aceita qualquer corte, você sabe logo pelo jeito.

Reconsiderou: não lhe aprazia a clientela especial. Os olhos daquela gente invariavelmente demonstravam interesse excessivo pela mercadoria. Havia uma cobiça desmedida, um gozo que não lhe parecia natural, como que imbuído de alguma perversidade que lhes fornecia a energia vital. Tinham pressa em preencher os papéis e efetuar o pagamento. Dizia-se que realizavam grandes cerimônias para a degustação e preparavam o próprio corpo antes de ingerir as carnes especiais, temperando os músculos e o paladar com óleos e ervas específicas para cada corte.

Chegou ao açougue a tempo de ainda acompanhar o descarregamento do lote de que fora informado. Poucos homens realizavam o trabalho naquele dia, o que o incentivou a auxiliar na retirada da carga, coisa que jamais tinha feito. Observara muitas vezes aquele rolar de corpos para as carretas, mas nunca de dentro do caminhão, em meio às carcaças que iam desabando do topo da pilha umas por cima das outras, até sofrerem forte impacto no contato com o piso ensanguentado e serem brutalmente empurradas para o descanso final naquelas covas de aço sobre trilhos. Chacoalhava as mãos ao redor da cabeça e do peito para afastar o mosqueiro atraído pelo grude sangrento da pele, ao tempo que repuxava os membros que se entrelaçavam no monte de corpos para que se desvencilhassem uns dos outros, facilitando o translado. A pelagem dos bichos adquirira uma aparência plastificada e uma dureza que o impressionou no primeiro contato. Haveria de ser culpa da sangraria que as besuntava e da quentura, tal qual a de um forno, da carroceria chapeada de aço.

Um dos cadáveres, de corpanzil acima da média, obstruía os demais por causa de suas dimensões incomuns, o que o obrigou a forçar sua precipitação agarrando-se às pelancas do pescoço e da papada, forçando a carga a se deslocar. Um urro gutural ecoou, cessando apenas quando involuntariamente largou a massa molenga que tinha nas mãos. O movimento desequilibrou-o, fazendo-o despencar do topo da pirâmide de carne, pele e osso. Depois de ter escorrido o rosto, as mãos, o tronco todo, até mesmo os lábios na couraça enrijecida pelo grude de sangue e suor seco, mirou o topo da pilha de corpos e pôde ver o par de pupilas dilatadas responsabilizando-o pela dor. Estava viva, a besta. Cobrava providências para o seu estado.

Quatro homens foram necessários para pô-la numa carreta onde o corpo foi mal acomodado, enquanto o chefe fazia ligações para o fornecedor, o transportador, o corretor, o advogado e o proprietário. Não queria, sob qualquer condição, ter de se responsabilizar pelo erro alheio. Não iria, da mesma forma, abater o bicho e conduzi-lo ao beneficiamento: poderia ser acusado de maus tratos, de crime hediondo. De assassinato. A responsabilidade era de quem havia encontrado o corpo ainda sensível ao toque, aos estímulos e percepções, incapacitado de ser submetido ao consumo. E não havia coincidência nenhuma em ser um trabalhador fora de suas funções profissionais e, portanto, inepto para aquele tipo de serviço. Com a condição de prover uma destinação ao corpo, ele não seria responsabilizado administrativamente e receberia todos os seus direitos legais pela quebra do vínculo com a empresa.

Expiado menos pela culpa do que pelo esforço de transportar o peso da carga viva até a cama, providenciou antibióticos, anti-inflamatórios, analgésicos, antitérmicos, fitoterápicos, coagulantes, antitetânicos e um variado arsenal de suplementos vitamínicos. Tratou da ulceração no crânio e das lesões menores pelo corpo, removendo pruridos e infecções, até restabelecer a condição saudável naquele corpo agonizante, com a dedicação e o esmero adquirido nos anos de manipulação de carnes e tecidos. Em uma manhã, desperto de um sono pesado que lhe atingira os sentidos, só aos poucos recobrados, não achou a besta sobre o leito. Foi encontrá-la de pé, na cozinha, com todas as partes do corpo à mostra, preparando o café com os seios lácteos que entornaram sua imaginação.

Comente:

Assinar: Postar comentários ( Atom )

Sobre

Um blogue não é mais uma blague. De agora em diante é uma página assombrada, uma ilusão encontrada, um roteiro de um filme para sempre, um guia útil para uma vida fútil, uma antologia ou mitologia pessoal, uma miscelânea pouco original, uma autoentrevista, um manual passo-a-passo de uma dança imóvel, um mistério a mais no mundo, um papel avulso, uma estranha obsessão, um crime sem castigo, uma adivinhação, um pássaro de uma perna só que foi ciscar e caiu, um suspiro, um minuto de silêncio.

QUEM FAZ

QUEM FAZ
Vitor Pamplona nasceu em Barreiras, interior da Bahia, em 1981. Em Salvador, fez faculdade de direito, mas formou-se em jornalismo. Vive em São Paulo.

Tags

  • Crônicas sem castigo
  • Estranhas citações
  • Ficções avulsas
  • Filmes para sempre
  • Foto-mistério
  • Ilusões políticas
  • Notas musicais
  • Páginas assombradas
  • Sem mais por ora

Contato

Nome

E-mail *

Mensagem *

Template by Templateism | Templatelib