Leia o livro, veja o filme, ouça o disco. A máxima marqueteira dos fabricantes de franquias da indústria cultural capturou a obra musical de Chico Buarque. Com acréscimo de um imperativo: veja a minissérie.
Depois do lançamento, ano passado, de Essa história está diferente, coletânea de contos inspirados em canções do compositor, foi exibida semana passada pela Rede Globo a série Amor em 4 Atos. Na tela, quatro episódios traduziram cinco músicas de Chico para nossa edulcorada teledramaturgia.
A culpa é do produtor Rodrigo Teixeira, que deu ao cinema brasileiro O Cheiro do Ralo e O Casamento de Romeu e Julieta, e à nossa literatura a série Amores Expressos, polêmico projeto que mandou 17 escritores tupiniquins escreverem histórias de amor ao redor do mundo. Em parceria com o editor Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, Teixeira convenceu Chico a vender os direitos de suas canções para um projeto multimídia que inclui, além do livro e da minissérie, o filme Olhos nos Olhos, que estreia este ano com direção de Karim Aïnouz.
Era justo esperar que as adaptações televisivas, por compartilharem o mentor ideológico, aproveitassem o bom material do livro. Mas a aposta em roteiros originais resultou, no primeiro dia, num curta-metragem pós-Malhação e, no segundo, num novelão superficial e choroso. Ressalva: mais bela, sexy e com menos roupa, Marjorie Estiano segurou o ibope.
Foi preciso o olhar de um profissional de cinema, o diretor Bruno Barreto, para evitar que a música oferecesse só enredo e trilha sonora. Nos dois últimos episódios havia certa atmosfera buarquiana, com planos mais longos, silêncios, vida amorosa.
Ainda assim, na TV as versões de Folhetim e As Vitrines foram previsíveis, o que os contos de Essa história está diferente fazem questão de não ser.
A boa educação recomenda não comparar livro com filme (ou série de TV): uma coisa é a linguagem literária, outra a audiovisual. Por isso, ao invés de falar em adaptação, prefiro a ideia de interpretação. A canção, enquanto gênero, é bom exemplo de ‘obra aberta’. O sentido muda até com o contexto em que se ouve. Associada ao amor romântico, a cultura popular ouve nas músicas de Chico Buarque a declaração de um amante convencional, masculino ou feminino. Diferente da TV, que não escapou a esse hábito, na prosa sobra imaginação.
Se, na minissérie, Ela Faz Cinema dá origem à história de amor de um operário (de Construção) e uma cineasta, no conto do argentino Alan Pauls há o vínculo de um pai com a filha adolescente – a música fala de um homem inseguro em relação a uma mulher. Qualquer mulher, infere Pauls. A versão de Carola Saavedra para Mil Perdões, ao contrário das traições baratas da TV, traz um casal que discute e desconfia a partir de suspeitas jamais confirmadas. E, em escrita teatral, há versões distintas caso o traído seja homem ou mulher.
Outro exemplo é o triângulo amoroso que Xico Sá tirou de Folhetim. Um narrador com amnésia, fissurado numa “mulher de todos”, abre a porta de botecos para Flaubert e Machado de Assis. Insuperável mesmo é a história de amor entre dois homens, iniciada numa galeria, que João Gilberto Noll entrevê em As Vitrines. Chico Buarque para gays faz a televisão parecer um conto de fadas para criancinhas.
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