J.D. Salinger, 90
É no mínimo surpreendente saber que J. D. Salinger, o lendário autor de O Apanhador no Campo de Centeio , está vivo. O espanto vai além: ...

É no mínimo surpreendente saber que J. D. Salinger, o lendário autor de O Apanhador no Campo de Centeio, está vivo. O espanto vai além: no primeiro dia de 2009, ele completou 90 anos, dos quais mais de 50 passados em total reclusão na cidadezinha americana de Cornish, New Hampshire (população: 1.661). Leio no imenso artigo publicado pelo “New York Times” no dia do aniversário do mito que, por algum tempo, jornais e revistas dos Estados Unidos gostavam de praticar um “esporte jornalístico”: enviar repórteres a Cornish na esperança de um imagem do escritor ou, ao menos, de uma declaração de algum fofoqueiro local. Mas Salinger não é fotografado há décadas e os moradores simplesmente se recusam a falar sobre o vizinho ilustre.
Lançado em 1951, O Apanhador no Campo de Centeio foi seu primeiro livro. Com ele, Salinger inaugurou o que críticos costumeiramente chamam de uma nova voz na literatura, um rito de passagem para a juventude inteligente mas descontente. Quando o li, com uns 15 ou 16 anos, lembro de ter guardado duas primeiras impressões: 1. como era linda a tradução do título original (Catcher in The Rye) para o português, mais poética e sonora que no inglês. 2. provavelmente eu estava diante do primeiro anti-herói autêntico da literatura americana (Holden Caulfied, o protagonista); ele não decidia ser outsider nem era um falso modesto como os personagens beatniks, era mesmo um ninguém.
Salinger publicou em seguida, em 1953, Nove Estórias. Foi aclamado pela crítica pela forma com que reestruturou a arquitetura tradicional do conto, concentrando as reviravoltas das histórias em pequenas alterações de humor ou tom do texto. Daí em diante, suas histórias passaram a rondar a fictícia família Glass: Franny & Zooey (1961), Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira e Seymour: uma Apresentação (ambos de 1963), e Hapworth 16, 1924, conto impresso na edição de 19 de junho de 1965 da revista “The New Yorker”, seu último escrito publicado.
Exatamente no auge da fama, Salinger calou-se. Parou de dar entrevistas e de ser visto (ao menos por repórteres). Só voltou a ser manchete duas vezes. A primeira foi no fim da década de 1980, quando recorreu à Suprema Corte para impedir a publicação de cartas suas numa biografia. A segunda foi em 1997, quando concordou com a publicação deHapworth, numa edição de capa dura a cargo de uma pequena editora, mas depois voltou atrás.
Tão pouca publicidade aflige quem a crítica literária americana chama de “salingerologistas”. São fãs com todo tipo de teoria sobre o exílio do ídolo: que ele não escreveu uma palavra em décadas, ou que escreve o tempo todo e queima os manuscritos, ou que tem dezenas de volumes esperando para serem publicados postumamente. Sua ex-mulher, a escritora Joyce Maynard (com quem Salinger começou a se relacionar aos 53 anos, quando ela tinha 19 e já trabalhava para revistas), escreveu em suas memórias que, nos anos 1970, na casa onde os dois moraram juntos, havia prateleiras com dezenas de cadernos dedicados à família Glass. E que ao menos dois novos romances, ela acredita, estavam trancados em um cofre.
Que família é essa cujos detalhes jazem trancafiados no esconderijo inventado por seu criador? Responde o escritor e jornalista Charles MacGrath, ex-editor do suplemento literário do “New York Times” (“The New York Times Book Review”) e ex-chefe do departamento de ficção da revista “The New Yorker”, que a considera “uma das mais vívidas, divertidas e bem acabadas famílias de toda a literatura americana”. Os Glasses são Les e Bessie, ex-atores do teatro de vaudevile, e seus sete filhos: Seymour, Buddy, Boo Boo, Walt, Waker, Zooey e Franny.
Seymour, o mais velho, é aquele a que o escritor dedica mais atenção. É ele o principal personagem (o único, para ser honesto) de Hapworth. O último texto de Salinger é a transcrição de uma carta escrita por Seymour, aos 7 anos de idade, em um acampamento de verão. Apesar da idade, o autor esforça-se para se revelar um geniozinho precoce: já lê em várias línguas, deseja a jovem mulher do proprietário do acampamento e encomenda uma enorme lista de livros. “Qualquer livro intolerante ou tolerante sobre Deus ou meramente a religião, assim como os escritos por pessoas cujo último nome comece com qualquer letra depois do H; por uma questão de segurança, incluam o H, apesar de eu achar que já o esgotei... As obras completas do conde Leo Tosltoi. ...Charles Dickens, seja em abençoada totalidade ou em qualquer forma ou aparência. Meu Deus, eu te saudo, Charles Dickens!” E por aí vai a carta, passando por Proust – em francês – e Goethe, títulos mais que suficientes para preencher uma vida literária inteira, mas que seriam devorados nas seis semanas seguintes.
Hapworth é um relato, em primeira pessoa, da mais absoluta pretensão. Mas também uma crônica sobre um garoto com imensa saudade de casa e que implora atenção. Anos depois, este mesmo garoto (já transformado num poeta místico, que nutre uma autoimagem de santo) vai sacar uma pistola de sua mala e se matar durante sua lua-de-mel (esta história foi publicada antes, em 1948, no conto Um Dia Perfeito para o Peixe Banana, que está em Nove Estórias).
O texto escrito pelo Seymour criança, coincidentemente rejeitado pela crítica na década de 1960, tem sido encarado ultimamente como a única chave possível para mapear o silêncio de Salinger, mas não apenas por ser o último.Hapworth 16, 1924 mostra o personagem favorito do escritor em raro estado de insegurança. Seymour, para quem não foi apresentado, foi concebido por Salinger como um símbolo de sensibilidade e superioridade moral, alguém bom demais para este mundo.
O que o sentimento de incerteza pode ter a ver com a decisão de desaparecer para sempre é algo capaz de instigar fãs mais obcecados, mas dificilmente vai revelar as razões que levaram um dos maiores escritores do século 20 a, ao seu modo, também cometer suicídio. É um desses mistérios que talvez nem mais 90 anos ou 90 livros escondidos serão capazes de responder.
Leia (em inglês ou com a ajuda do tradutor do Google ): Hapworth 16, 1924 e Um Dia Perfeito para o Peixe Banana
Comente: