O ano em que foi triste ser campeão
O corte pedregoso do rosto de Cao Hamburger esconde uma cilada. Por trás do talhe de centurião, na nossa era compreensivelmente recolhido ...
O corte pedregoso do rosto de Cao Hamburger esconde uma cilada. Por trás do talhe de centurião, na nossa era compreensivelmente recolhido à timidez em virtude de alguma saudade ancestral das legiões romanas, existe um homem terno e afeiçoado às crianças.
Sua familiaridade com o universo infantil, aprimorada na televisão com o festejado “Castelo rá-ti-bum” e o neurótico “Disney cruj”, e no cinema com o filme homônimo da série produzida pela TV Cultura, rendeu-lhe ano passado o maior fruto de sua carreira: a pequena obra-prima “O ano em que meus pais saíram de férias” (2006, Brasil) . Obra-prima no sentido radical, o de primeira produção sua cujo resultado está no nível dos mestres do ofício.
Não é um filme carreirista. O desejo pelo sucesso não o faz atropelar a concorrência buscando a qualquer preço distinguir-se de seus pares. A léguas da originalidade, prefere o caminho da difamada narrativa convencional e não chega a surpreender. Mas obtém a mais cara vitória a um cineasta, pintor, músico ou qual seja a especialidade reducionista a que o artista se submeta: comove.
Por isso, extrapola a maioria das restritas abordagens do limitado mundo da crítica de cinema. Depoimento naturalista, mas não realista, e emocional, mas não melodramático sobre este garoto separado dos pais durante a ditadura, “O ano em que meus pais saíram de férias” merece um ensaio historiográfico, uma crônica sentimental, um texto despretensioso ou um poema devotado aos revolucionários mortos. Tudo, menos a pachorra pseudo-analítica cometida em nome da crítica cinematográfica.
A história começa quando Mauro (Michel Joelsas) é deixado pelos pais, Bia (Simone Spoladore) e Daniel (Eduardo Moreira), na casa do avô Motel (Paulo Autran), imigrante judeu que mora no Bom Retiro, em São Paulo. O ano é 1970 e, salvo pela presença de um caminhão do Exército na estrada, nada mais é dito ou visto até aí. A omissão é uma constante no filme, mas nada tem de irresponsável ou criminosa — Cao Hamburger descobriu o poder do silêncio e conta um drama familiar resultado da repressão política com pouquíssimas alusões ao regime ou à luta armada. As poucas que faz, deposita no estudante esquerdista vivido por Claio Blat. E ao dar prioridade ao convívio de Mauro com a comunidade do bairro, ao seu modo, repete o lema pacifista de que, dentro da guerra, existe o homem.
Homem não. Menino, cruzeirense, fã de Tostão e apaixonado por futebol. A essas credenciais ele terá de acrescentar o afeto pelo velho Shlomo (Germano Haiut), que o “adota”, e pela menina Hanna (Daniela Piepsyk), sua cicerone na nova vizinhança. “O ano em que meus pais saíram de férias” é, sobretudo, esta história de retorno à infância perdida, ao tempo em que se corria livre no meio da rua e se olhava, pelo buraco na parede, as mulheres trocando de roupa. Resquícios de um passado traumatizado pelo regime militar que, para o bem e para o mal, forjou a modernidade do ‘Brasil Grande’ e legou o futuro que vivemos hoje.
Uma das grandes ausências poéticas do cinema brasileiro é a dívida que possui com o futebol, maior expressão cultural de nosso povo. Salvo a racionalidade documental de um “Garrincha, a alegria do povo”, ou tentativas bem intencionadas, mas um pouco frustrantes, do calibre de “Boleiros” (1 e 2), o futebol brasileiro não produziu cinema à altura. Sem ser um filme sobre futebol, “O ano em que meus pais saíram de férias” paga um pouco dessa dívida ao subverter o sentimento que mantemos com a Copa de 1970, nossa mais épica conquista, a partir de uma história pessoal, mas ao mesmo tempo coletiva.
Momento mais significativo do filme, a lendária final contra a Itália é recriada à luz dos porões da ditadura e, à sombra dos desaparecidos políticos, transforma-se em uma das passagens mais ambíguas de nossa história: a euforia popular do grito de campeão é tragicamente abafada pela triste memória dos paus de arara, o que faz de “O ano em que meus pais saíram de férias” um dos filmes mais tristes já produzidos no Brasil.
Sua familiaridade com o universo infantil, aprimorada na televisão com o festejado “Castelo rá-ti-bum” e o neurótico “Disney cruj”, e no cinema com o filme homônimo da série produzida pela TV Cultura, rendeu-lhe ano passado o maior fruto de sua carreira: a pequena obra-prima “O ano em que meus pais saíram de férias” (2006, Brasil) . Obra-prima no sentido radical, o de primeira produção sua cujo resultado está no nível dos mestres do ofício.
Não é um filme carreirista. O desejo pelo sucesso não o faz atropelar a concorrência buscando a qualquer preço distinguir-se de seus pares. A léguas da originalidade, prefere o caminho da difamada narrativa convencional e não chega a surpreender. Mas obtém a mais cara vitória a um cineasta, pintor, músico ou qual seja a especialidade reducionista a que o artista se submeta: comove.
Por isso, extrapola a maioria das restritas abordagens do limitado mundo da crítica de cinema. Depoimento naturalista, mas não realista, e emocional, mas não melodramático sobre este garoto separado dos pais durante a ditadura, “O ano em que meus pais saíram de férias” merece um ensaio historiográfico, uma crônica sentimental, um texto despretensioso ou um poema devotado aos revolucionários mortos. Tudo, menos a pachorra pseudo-analítica cometida em nome da crítica cinematográfica.
A história começa quando Mauro (Michel Joelsas) é deixado pelos pais, Bia (Simone Spoladore) e Daniel (Eduardo Moreira), na casa do avô Motel (Paulo Autran), imigrante judeu que mora no Bom Retiro, em São Paulo. O ano é 1970 e, salvo pela presença de um caminhão do Exército na estrada, nada mais é dito ou visto até aí. A omissão é uma constante no filme, mas nada tem de irresponsável ou criminosa — Cao Hamburger descobriu o poder do silêncio e conta um drama familiar resultado da repressão política com pouquíssimas alusões ao regime ou à luta armada. As poucas que faz, deposita no estudante esquerdista vivido por Claio Blat. E ao dar prioridade ao convívio de Mauro com a comunidade do bairro, ao seu modo, repete o lema pacifista de que, dentro da guerra, existe o homem.
Homem não. Menino, cruzeirense, fã de Tostão e apaixonado por futebol. A essas credenciais ele terá de acrescentar o afeto pelo velho Shlomo (Germano Haiut), que o “adota”, e pela menina Hanna (Daniela Piepsyk), sua cicerone na nova vizinhança. “O ano em que meus pais saíram de férias” é, sobretudo, esta história de retorno à infância perdida, ao tempo em que se corria livre no meio da rua e se olhava, pelo buraco na parede, as mulheres trocando de roupa. Resquícios de um passado traumatizado pelo regime militar que, para o bem e para o mal, forjou a modernidade do ‘Brasil Grande’ e legou o futuro que vivemos hoje.
Uma das grandes ausências poéticas do cinema brasileiro é a dívida que possui com o futebol, maior expressão cultural de nosso povo. Salvo a racionalidade documental de um “Garrincha, a alegria do povo”, ou tentativas bem intencionadas, mas um pouco frustrantes, do calibre de “Boleiros” (1 e 2), o futebol brasileiro não produziu cinema à altura. Sem ser um filme sobre futebol, “O ano em que meus pais saíram de férias” paga um pouco dessa dívida ao subverter o sentimento que mantemos com a Copa de 1970, nossa mais épica conquista, a partir de uma história pessoal, mas ao mesmo tempo coletiva.
Momento mais significativo do filme, a lendária final contra a Itália é recriada à luz dos porões da ditadura e, à sombra dos desaparecidos políticos, transforma-se em uma das passagens mais ambíguas de nossa história: a euforia popular do grito de campeão é tragicamente abafada pela triste memória dos paus de arara, o que faz de “O ano em que meus pais saíram de férias” um dos filmes mais tristes já produzidos no Brasil.
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