A morte de Saddam, à francesa
Jeanne Moreau, perdida na noite antes de ter seu destino selado O espetáculo de sombras e grunhidos do enforcamento ...

Jeanne Moreau, perdida na noite antes de ter seu destino selado
O espetáculo de sombras e grunhidos do enforcamento do tiranete Saddam Hussein, registrado para a posteridade graças à insubordinação hierárquica dentro da parcela americanólifa do Exército iraquiano que sobreviveu à deposição do ditador, não provocou constrangimento apenas aos defensores do novo regime, especialmente aqueles mais apegados à sola das botas de Walker Bush. Foi a demonstração cabal da falência completa da ocupação yankee, cujo propósito on the record de impingir à sociedade iraquiana um simulacro macaqueado da democracia americana deve ficar como legado para a próxima geração da dinastia Bush.
Faltou glamour ao fim trágico do ditador, e se os americanos não conseguiram, em três anos, ensinar aos tutelados a importância de manter o glamour, não há, definitivamente, qualquer esperança de salvação para o projeto de estância no Oriente levado a cabo pelos falconetes. Enforcamentos têm sua razão de ser no espetáculo público, nas multidões fascinadas pela expiação dos condenados e na expressão horrorizada dos criminosos aos pés do cadafalso. Nada disso a morte de Saddam nos proporcionou e, na verdade, vem daí a indignação generalizada da comunidade internacional com o desfecho de vida chinfrim que teve um homem que poucos hesitam em classificar como um monstro.
Imagino se a direção do enforcamento de Saddam pudesse ter sido entregue a Louis Malle, em cuja biografia encontramos o título perfeito para qualquer reportagem, série de TV ou filme, que é o caso, sobre as trágicas circunstâncias que levam o criminoso a sair do anonimato e ser condenado: Ascensor para o Cadafalso. O título em inglês, Elevator to the Gallows, parece feito sob medida para as barras horizontais da CNN. Perderam a oportunidade de mostrar, ou não quiseram, o que Malle e os embaixadores das Nações Unidas julgam ser uma regra inexorável: a de que o crime não compensa e, ainda que seja dado ao meliante — assaltante de banco ou banqueiro — a chance de se safar, acabamos pagando pelos erros dos outros. Não é sempre assim, mas a comparação parece adequada ao caso de Saddam.
Como no filme, não há inocentes, ainda que o diabo do cinema nos faça crer na inimputabilidade do herói. Nem Jeanne Moreau, verdadeiramente bela para a decepção dos que costumam apontar nela qualidades puramente performáticas, escapa à ironia do destino na pele da mulher de milionário apaixonada por um ex-combatente da guerra da Algéria, convertido em assessor e assassino do magnata. Tal qual nosso ditador esgoelado, ela e o amante (Maurice Ronet, de A Mulher Infiel, de Chabrol) tornam-se joguetes da imprevisibilidade da vida. Julgam protagonizar suas próprias histórias, mas não contam com as voltas que o mundo dá. Em suma, armam e se dão mal.
Foi o sucedido a Saddam. Subiu ao poder com um empurrãozinho dos futuros carrascos. Governou com mão de ferro e pacificou o país na base do ‘cala a boca’ e do genocídio dos opositores. Fez a pax saddamniana. Pode ter saído no lucro e estar cercado de setecentas virgens, soprando no ouvido de Maomé o próximo lance no tabuleiro em que Walker Bush acredita ser o único jogador. Mas não terá, como nós, o privilégio de possuir Jeanne Moreau — que nunca se fez passar por virgem — para consolar nossos crimes.
1 comentários :
Boa, Vítor.
ReplySaddam é cinematográfico, mas Malle não é realmente a melhor escolha para esse filme. Tem mais a ver com Sokurov, sempre saudoso de governantes e épocas derrotadas. Visconti, nada - Saddam não faz seu tipo.