CINEMA Sexo e frustração em 9 Canções Se existe uma pergunta a ser feita ao fim da projeção de 9 Canções [9 Songs], principalmente em ...
Sexo e frustração em 9 Canções
Se existe uma pergunta a ser feita ao fim da projeção de 9 Canções [9 Songs], principalmente em face da absoluta gratuidade que o filme aparenta ressoar, seja para esclarecer a dúvida ou confirmar a impressão, é no propósito do filme que ela deve se concentrar.
Pois, afinal, o que pretende um cineasta como Michael Winterbottom, cuja filmografia inclui um Welcome to Sarajevo (1997), um 24 Hour Party People (2002) e um In This World (2002), com um filme do gênero? Um filme que foi – e continua sendo – resumido como a “história de um casal que faz sexo e nos intervalos vai a shows de rock”. Um filme chamado pejorativamente de ‘pornô cult’, acusado de nada dizer e nada acrescentar, recriminado por possuir uma “liberdade cênica fraudulenta”. Um filme não raro comparado, para o bem ou para o mal, a exemplares tão díspares quanto O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, 9 e 1/2 Semanas de Amor, de Adrian Lyne, O Império dos Sentidos, de Nagisa Oshima, e Lucia e o Sexo, de Julio Medem.
Por mais rústica que seja, qualquer ponderação sobre o valor deste 9 Canções implica, mesmo que seja apenas a fim de não recair nas más comparações, na procura por alguma espécie de senso, ainda que dissimulado, capaz de irromper o que se vê na tela. Não se trata de buscar significados estapafúrdios no que por ventura transpire banalidade, procurando chifre em cabeça de cavalo, mas de não negligenciar o direito à expressão poética - que toda obra de arte supõe. Se, como sugere a crítica freudiana, às vezes um charuto é apenas um charuto, esta só é uma opinião considerável quando acompanhada da inviabilidade ou, ainda que seja, implausibilidade da negativa.
Onde estaria então, escondida no realismo embustido do sexo explícito gratuito porque avulso, a poesia de 9 Canções? De outro modo, o que o filme transmite, com seus personagens triviais e seu texto anêmico, que autoriza a dizer que há uma? Ou ainda, de maneira mais radical: o que é poético?
Escolher temas ditos ‘nobres’ ou conferir ‘nobreza’ a temas ditos ‘banais’ costuma ser identificado com a poesia no cinema. Igualmente, articular temas de maneira original, capaz de conceber o mundo sob a ótica do poeta. Não é outro o caso de John Ford – pela ação como reflexo da moral, de Visconti ou De Sica – pela valorização do drama popular, ou de Welles, Resnais, Fellini – pela preocupação em reorganizar o universo segundo uma visão particular.
Desse ponto de vista, sempre foi vitoriosa a idéia de que o sexo é retratado por uma lógica que opõe erotismo a pornografia, lirismo a degradação estética, nobreza a vulgaridade. Erótico é tudo aquilo que, explícito ou não, afasta o pornográfico pela omissão ou sublimação. A distinção é problemática: é como se a nobreza da representação dependesse do desaparecimento ou estetização de órgãos, movimentos e secreções. O sexo em si, ‘sexo puro’, este seria impassível de poesia.
Não por acaso, a veia mais profícua da expressão sexual é aquela que transfere seu centro da região púbica para a cerebral. É a concepção freudiana do sexo como ‘origem das frustrações’ que inspira boa parte dos trabalhos de Bergman, a grande sumidade quando se fala de sexo e cinema. Para o autor de Persona e Gritos e Sussuros, a prevalência do sexo como temática tem um sentido não-explícito, intricado, sequer compreensível, mas onipresente. Misteriosa e insolúvel, a tensão sexual em Bergman é tudo menos realidade imediata. É o exemplo perfeito de sexo sublimado.
Exatamente o oposto do realismo pueril de 9 Canções, cuja câmera apodera-se da intimidade de Matt e Lisa pela via mais evidente possível para o olhar. Vê-se tudo em primeiro plano. Exibe-se o amor aqui e agora. E se faz de tudo para concentrar a atenção neste ponto: os diálogos não são elaborados, a vida fora do quarto esquematizada pela música pálida de concertos de rock que se reproduzem, a vida dentro do quarto percebida quase sempre por recortes carnais. Winterbottom agrupa as memórias de Matt num todo que contempla essencialmente sexo e anti-sexo: os shows são brochantes, o trabalho evasivo e distante do amor.
Declarações amorosas e desilusões à parte (a masturbação de Lisa observada por Matt é o melhor momento do filme, é o signo da perda futura), para o ponto de vista do homem, o sexo é essencial não por corresponder a seus instintos de macho, à tendência natural do gênero. Pelo contrário, o macho de 9 Canções é sensibilizado ao extremo e identificado com a imagem do homem moderno. Vem daí sua importância e valor.
Se, como propõe a psicanálise, as tensões sexuais são o mais poderoso centro motivador do comportamento humano, 9 Canções não pode então ser acusado de tolo e gratuito. Ao contrário, como não vulgariza nem glamuoriza o tema, deveria ser suficiente para comover. É paradoxal: o sexo é verdadeiro, está lá como é praticado, mas não exprime o sentido maior, fundamental, que dele se espera. Se o realismo básico, tecnicamente correto, é desatento à essência imperceptível da vida e incompatível com a realidade, o sexo como concebemos não pode pertencer a esta mesma realidade. Bergman, enfim, triunfa.
Pois, afinal, o que pretende um cineasta como Michael Winterbottom, cuja filmografia inclui um Welcome to Sarajevo (1997), um 24 Hour Party People (2002) e um In This World (2002), com um filme do gênero? Um filme que foi – e continua sendo – resumido como a “história de um casal que faz sexo e nos intervalos vai a shows de rock”. Um filme chamado pejorativamente de ‘pornô cult’, acusado de nada dizer e nada acrescentar, recriminado por possuir uma “liberdade cênica fraudulenta”. Um filme não raro comparado, para o bem ou para o mal, a exemplares tão díspares quanto O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, 9 e 1/2 Semanas de Amor, de Adrian Lyne, O Império dos Sentidos, de Nagisa Oshima, e Lucia e o Sexo, de Julio Medem.
Por mais rústica que seja, qualquer ponderação sobre o valor deste 9 Canções implica, mesmo que seja apenas a fim de não recair nas más comparações, na procura por alguma espécie de senso, ainda que dissimulado, capaz de irromper o que se vê na tela. Não se trata de buscar significados estapafúrdios no que por ventura transpire banalidade, procurando chifre em cabeça de cavalo, mas de não negligenciar o direito à expressão poética - que toda obra de arte supõe. Se, como sugere a crítica freudiana, às vezes um charuto é apenas um charuto, esta só é uma opinião considerável quando acompanhada da inviabilidade ou, ainda que seja, implausibilidade da negativa.
Onde estaria então, escondida no realismo embustido do sexo explícito gratuito porque avulso, a poesia de 9 Canções? De outro modo, o que o filme transmite, com seus personagens triviais e seu texto anêmico, que autoriza a dizer que há uma? Ou ainda, de maneira mais radical: o que é poético?
Escolher temas ditos ‘nobres’ ou conferir ‘nobreza’ a temas ditos ‘banais’ costuma ser identificado com a poesia no cinema. Igualmente, articular temas de maneira original, capaz de conceber o mundo sob a ótica do poeta. Não é outro o caso de John Ford – pela ação como reflexo da moral, de Visconti ou De Sica – pela valorização do drama popular, ou de Welles, Resnais, Fellini – pela preocupação em reorganizar o universo segundo uma visão particular.
Desse ponto de vista, sempre foi vitoriosa a idéia de que o sexo é retratado por uma lógica que opõe erotismo a pornografia, lirismo a degradação estética, nobreza a vulgaridade. Erótico é tudo aquilo que, explícito ou não, afasta o pornográfico pela omissão ou sublimação. A distinção é problemática: é como se a nobreza da representação dependesse do desaparecimento ou estetização de órgãos, movimentos e secreções. O sexo em si, ‘sexo puro’, este seria impassível de poesia.
Não por acaso, a veia mais profícua da expressão sexual é aquela que transfere seu centro da região púbica para a cerebral. É a concepção freudiana do sexo como ‘origem das frustrações’ que inspira boa parte dos trabalhos de Bergman, a grande sumidade quando se fala de sexo e cinema. Para o autor de Persona e Gritos e Sussuros, a prevalência do sexo como temática tem um sentido não-explícito, intricado, sequer compreensível, mas onipresente. Misteriosa e insolúvel, a tensão sexual em Bergman é tudo menos realidade imediata. É o exemplo perfeito de sexo sublimado.
Exatamente o oposto do realismo pueril de 9 Canções, cuja câmera apodera-se da intimidade de Matt e Lisa pela via mais evidente possível para o olhar. Vê-se tudo em primeiro plano. Exibe-se o amor aqui e agora. E se faz de tudo para concentrar a atenção neste ponto: os diálogos não são elaborados, a vida fora do quarto esquematizada pela música pálida de concertos de rock que se reproduzem, a vida dentro do quarto percebida quase sempre por recortes carnais. Winterbottom agrupa as memórias de Matt num todo que contempla essencialmente sexo e anti-sexo: os shows são brochantes, o trabalho evasivo e distante do amor.
Declarações amorosas e desilusões à parte (a masturbação de Lisa observada por Matt é o melhor momento do filme, é o signo da perda futura), para o ponto de vista do homem, o sexo é essencial não por corresponder a seus instintos de macho, à tendência natural do gênero. Pelo contrário, o macho de 9 Canções é sensibilizado ao extremo e identificado com a imagem do homem moderno. Vem daí sua importância e valor.
Se, como propõe a psicanálise, as tensões sexuais são o mais poderoso centro motivador do comportamento humano, 9 Canções não pode então ser acusado de tolo e gratuito. Ao contrário, como não vulgariza nem glamuoriza o tema, deveria ser suficiente para comover. É paradoxal: o sexo é verdadeiro, está lá como é praticado, mas não exprime o sentido maior, fundamental, que dele se espera. Se o realismo básico, tecnicamente correto, é desatento à essência imperceptível da vida e incompatível com a realidade, o sexo como concebemos não pode pertencer a esta mesma realidade. Bergman, enfim, triunfa.
Incômoda e enfadonha, a decepção com 9 Canções vem da revelação de que o sexo, mesmo sendo tanto, é muito pouco. Se existe poesia aí? Claro, especialmente quando não há.
3 comentários
Entendi(se é q isso é possível) como : o ciclo de um relacionamento, tendo como fio condutor o sexo. Isso e só isso.
ReplyO resto agente discute no tão protelado almoço.
Hasta la vista amigo.
Foi Bazin quem disse que uma cena de sexo seria a mesma coisa que matar a vítima num filme de suspense?
ReplyTenho que ver ainda esse filme. Agenda-setting.
Muito bom o texto. Eu gostei muito deste filme.
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