GUERRA FRIA NOS MUNDOS DE STEVEN SPIELBERG
Existe um mal-estar inconfesso entre os admiradores de Steven Spielberg, o mais bem-sucedido cineasta americano da história. Ter usado a Guerra dos Mundos de H.G. Wells como propósito para um mau pai reconstruir sua relação com os filhos era até previsível, vindo de um diretor obcecado até a medula com a idéia do esfacelamento da família – o que não significa ser perdoável o desperdício da fábula levado a cabo. Mais do que seu eterno retorno à temática, a versão de Spielberg é uma autópsia da lógica de sua dramaturgia, pela qual o destino do protagonista é determinado pela natureza do antagonista e na qual o Bem separa e o Mal une.
Um pouco de história: há 28 anos atrás, naves espaciais suspensas sobre a cabeça de um cidadão médio americano deram início a uma espetacular decomposição de seu núcleo familiar. Obcecado com a idéia de reencontrá-las, hipnotizado por essa possibilidade, ele abandona casa, trabalho, mulher e filhos.
Quase três décadas depois, diante de uma situação igualmente extraordinária (não por acaso uma invasão alienígena), um outro americano médio sofre a mesma atração irresistível pelo Outro, sentimento que se transforma em repulsão, seu perfeito adverso, a partir da manifestação do Mal. Daí em diante, faz exatamente o oposto que seu compatriota: busca até o fim o recrudescimento das relações familiares.
O paranóico dos anos 70, interpretado por Richard Dreyfuss em Contatos Imediatos do Terceiro Grau, chamava-se Roy. O obstinado pai de família dos nossos dias, encarnado por Tom Cruise em Guerra dos Mundos, Ray.
Spielberg é auto-reverente: meio Guerra dos Mundos é refilmagem de Contatos Imediatos. Reproduz o anti-herói classe média em uma situação extraordinária, o pai desleixado e desinteressado (o Roy Neary de Contatos se esquiva do mini-golf prometido aos filhos), o fascínio imediato pelo desconhecido e a família colocada em segundo plano. A auto-referência só é interrompida pelos limites impostos pela imaginação de H.G. Wells, coisa a que Spielberg não dá lá grande importância (a comparação entre a reação do Ray Ferrier de Guerra dos Mundos com a do chefe de polícia Martin Brody de Tubarão é infundada: este defende a família enfrentando a ameaça).
Quando a excitação provocada pelo evento estranho (o Outro camuflado em raios que caem dezenas de vezes no mesmo lugar) se transforma em recusa da aceitação, Ray Ferrier treme, adolescente tardio que é, e comete o assassinato do livro de Wells. Foge desesperado do desconhecido, adquirindo um improvável instinto materno de sobrevivência. A iminência da catástrofe (a família ameaçada) modifica diametralmente sua personalidade, até então desagregadora, agora concentradora. Ray Ferrier vira uma mãezona judia egoísta e cega, enquanto em Contatos Roy Neary se torna um pai fundador altruísta e clarividente.
O relacionamento familiar em Spielberg não é reflexo da dialética interna, mas da adversidade externa. A família (o microcosmo de Spielberg, sua visão do paraíso) vive seqüestrada pelo mundo em convulsão.
Nos extras do DVD de Contatos Imediatos do Terceiro Grau existe uma cena emblemática, cortada da versão final. Em busca do caminho que o levará aos aliens, Roy Neary se depara com uma multidão que cerca seu carro, exatamente como acontece a Ray Ferrier e seus filhos em Guerra dos Mundos. Em vez de ser atacado por pessoas dispostas a matá-lo caso não entregue o carro, como ocorre com Ray, Roy é socorrido por elas, que lhe indicam o caminho a seguir. Essa aparente contradição demonstra a absoluta incompatibilidade entre público e privado em Spielberg – a convivência entre as duas esferas dependeria de uma complexidade que seu cinema não tem. Mas qualquer incoerência é ilusória. Por traz dela está a lógica da preservação da família contra a sobrevivência da espécie.
A incompatibilidade, não. Enxergar o Outro é mais uma questão de empatia e de desejo por amplitude de visão que de psicologia social. A compreensão do mundo exterior é determinada pela capacidade de perceber a realidade, não pela impossibilidade de atingir o desconhecido – Ray, ao contrário de Roy, quer continuar vendo o mundo exatamente do mesmo buraco em que se enfiou.
Longe de isso representar qualquer inconsistência, é uma Guerra Fria no mundo do cineasta, em que forças opostas (Bem e Mal determinando a reação do herói) funcionam como contrapesos uma da outra, que por sua vez estabelecem a ordem universal. O cinema arquétipo de Steven Spielberg é o da assertiva hobbesiana do homo homini lupus: o homem socializado é o predador natural da segurança privada.
8 comentários
Bom texto, cara. Vá guardando esse latim aí pra Ulisses.
ReplyLi de novo. Tá bom mesmo. Mas ainda ficou uma parte nebulosa pra mim.
Reply"Na madrugada a névoa esconde a cerejeira"
ReplyAntigo provérbio da Manchúria do Norte
Que papo de cerejeira é esse rapaz? Comunista metido a filósofo já basta o Carlos!
ReplyQue Carlos? O Marques?
ReplyDiante de tamanha arcabuzada, armistrondo, atoarda, atroada, atroamento, atrôo, barulho, boato, bramido, bumbum, buzineta, chiadeira, estalada, estalo, estampido, estardalhaço, estouro, estralaçada, estralada, estrépito, estridor, estrugido, estrupício, estrupido, explosão, fracasso, fragoído, fragor, frêmito, mosquetaria, papoco, pipoco, rebôo, ressono, restolhada, restolho, retinir, retrôo, retumbância, retumbo, ribombância, ribombo, ruído, soluço, sonido, surriada, tôo, trabucada, trápala, trom, trovão e trovoada, como publisher, articulista e responsável por essa budega, prometo responder acuradamente as dúvidas que forem remetidas à redação via telégrafo, telex, telegrama, código morse ou menino de recados.
ReplyAo seu dispor,
El Editor
Também tenho esse dicionário de idéias afins. É muito bom mesmo. Tô com preguiça de ler de novo. Depois aponto, mostro, exprimo, digo, falo, defino, encaminho, designo, indigito, personifico, encarno, figuro, dou a medida, tipifico, adumbro, marco, gravo, carimbo, assinalo, sinalo, aspo, risco, cedilho, rotuo, etiqueto, delineio, gizo, imprimo, estampo, estereotipo, lavro, escancaro, publico, aciono, iço, desenrolo, atesto, faço soarem os clarins ou as trombetas tracejo, traço, acentuo, pontifico, virgulo, selo, abulo, referendo, chancelo, timbro, tarjo, sigilo, enfim, contra-marco (para) (da) a dúvida.
ReplyÓtemo, Ulisses. Mostre ao Antônio das Mortes que você e Buark já usam o Guia dos Redundantes há tempos. Sem preconceitos, rs.
ReplyEmanuedja