A confissão de amor de André Bazin

Foi um dos primeiros a defender o som no cinema, por sua contribuição decisiva rumo ao realismo. Critica radicalmente os teóricos russos – especialmente Eisenstein – e minimiza o papel da montagem, que configura uma prática que distancia o cinema da realidade, já que esta não é entrecortada. Proclama o reinado da continuidade no seu sentido mais absoluto, tanto no nível lógico (do desenvolvimento das ações), como no da percepção visual (imagem sem cortes). Critica também a decupagem clássica, que seria um processo analítico artificial, que decompõe a realidade em fragmentos irreais.
O novo cinema de Bazin, o verdadeiro cinema realista, é o cinema da não-montagem. Esta assume caráter meramente residual. O plano-seqüência, as relações contidas simultaneamente na mesma imagem, os movimentos de câmera e a exploração do espaço contínuo revelam o essencial. O realismo no cinema depende, assim, de um tempo-espaço à imagem do real.
Em seu ensaio sobre Ladrões de Bicicleta, Bazin é, desde o princípio, contrário ao cinema da “grande mise-en-scène”, chamado por ele de “esteticismo-técnico”. O neo-realismo italiano, que surge para combatê-lo, utiliza a conjuntura histórica do pós-guerra para, fazendo uso de um estilo romanesco mais “objetivo” e mais “jornalístico”, denunciar a situação calamitosa que atingia a Itália. Bazin reconhece nos filmes inaugurais do movimento uma “reação útil e inteligente” contra a grande mise-en-scène, mas revela o receio de o neo-realismo se esgotar no “super-documentário” e na “reportagem romanceada” daquele período da História italiana que, certamente, seria superado.
O problema enfrentado pelo neo-realismo, então, era justamente a necessidade de livrar-se da pecha do pós-guerra para sobreviver enquanto modelo estético, superando o mero relato de uma época e escapando da escravidão à conjuntura histórica e política. O impasse estético a que se refere Bazin é fruto do desejo imperativo de ver cristalizado um modelo estético (tradução de um pensamento cinematográfico) que fosse, por si só, representativo não de uma conjuntura, mas de um novo caminho e de um novo projeto de cinema que independesse do tema. A preocupação baziniana é, assim, estritamente formal: a “forma neo-realista”, coroada por Ladrões de Bicicleta, estaria imbuída de um sentido mais revelador da realidade e da verdade.
Bazin aponta que todos os princípios neo-realistas estão presentes em Ladrões de Bicicleta: a intriga “popular”, o incidente banal, o evento sem qualquer força dramática própria mas que ganha sentido graças à condição social da vítima, a filmagem na rua, os intérpretes amadores.
A grande virada do filme, que faz com ele saia do impasse estético de que fala Bazin, tem início na possibilidade de se abstrair a significação social da trama sem que ela perca sua força dramática, seu sentido e sua capacidade de convencer o espectador de sua veracidade trágica. A casualidade dos acontecimentos, como o garoto que tem vontade de fazer xixi no meio de uma perseguição e a cena em que pai e filho são obrigados a esperarem pelo fim da tempestade, são decisivas neste processo de convencimento. Da mesma forma, a passagem em que o operário procura por companheiros que possam ajudá-lo a encontrar a bicicleta quando poderia queixar-se “sindicalmente”. Bazin tenta mostrar, assim, que em Ladrões de Bicicleta a tragédia é individual, não de classe. Que o sindicato não se preocupe com os infortúnios pessoais é até compreensível. Intolerável é a postura dos padres católicos, cuja “caridade” é cega à tragédia individual, interpreta.
A presença do menino, testemunha dos acontecimentos que vão aos poucos atacando a dignidade do pai, é vista por André Bazin como o maior dos trunfos de Vittorio De Sica. Através dele, o drama deixa de ser apenas social para ser humanista. Duas passagens do texto são extremamente significativas para esse diagnóstico. Na primeira, Bazin analisa a relação entre pai e filho: “A cumplicidade que se estabelece entre o pai e o filho é de uma sutileza que penetra até as raízes da vida moral. É a admiração que a criança como tal tem pelo pai, e a consciência que este tem dela, que conferem no final do filme sua grandeza trágica. A vergonha social do operário desmascarado e esbofeteado em plena rua não é nada perto daquela de ter tido seu filho por testemunha”.
Na segunda, revela a nova dimensão em que a tentativa de roubo fracassada do operário põe tal relação: “Se De Sica oferece tal satisfação (o gesto final do menino, oferecendo a mão ao pai) aos espectadores, é porque ela faz parte da lógica do drama. A aventura marcara uma etapa decisiva nas relações entre o pai e o filho, algo como a puberdade. O homem até então era um deus para seu filho; as relações deles estavam sob o signo da admiração. Elas foram comprometidas pelo gesto do pai. As lágrimas que eles derramam enquanto caminham lado a lado, os braços pendentes são o desespero de um paraíso perdido. A criança, porém, retorna ao pai através de sua degradação, agora ela o amará como um homem, com sua vergonha. A mão que escorrega na sua mão é nem o sinal de um perdão, nem de um consolo pueril, e sim gesto mais grave que possa marcar as relações de um pai e de seu filho: o gesto que os torna iguais”. Em ambas as passagens, Bazin não poderia ter dito melhor: identifica no clímax do filme o significado humano que o drama possui, ultrapassando as amarras sociais a que se vinculava previamente o neo-realismo e redimensionando seu modelo estético para além da conjuntura histórica. Ladrões de Bicicleta transforma-se, ao final, em uma tragédia popular e universal.
O estilo de interpretação é apontado como outro fator que distingue Ladrões de Bicicleta de filmes anteriores. Apesar do uso de atores não profissionais já não ser mais uma novidade, Bazin defende a existência de uma verdadeira supressão da própria idéia de atuação. A identificação com os personagens do povo (por serem os atores igualmente figuras do povo, talvez), transforma o homem e a criança em figuras autênticas, anônimas, perfeitas, caracterizando uma fuga aos padrões miméticos clássicos. A concepção de ator em Ladrões de Bicicleta leva menos em consideração o fato de se interpretar melhor ou pior do que o do ator estar identificado com o seu personagem, explica Bazin. Os atores de Ladrões de Bicicleta não mais representam: vivem o personagem.
Este “desaparecimento” do ator corresponde, para o teórico francês, ao desaparecimento da própria idéia de mise-en-scène. Esta se torna desnecessária porque o evento basta a si mesmo: concretizam-se assim muitos dos preceitos defendidos por Bazin, como a interferência mínima no desenvolvimento da ação, abolindo-se as arbitrariedades da câmera. A esta só é permitido o essencial para que se conserve seu fluxo natural.
O fim da mise-en-scène representa o fim da “ação” no que ela tem de espetacular, de extraordinário. A “suprema naturalidade” do modelo novo combate os estratagemas típicos do romance e do teatro, em que há necessária sucessão de acontecimentos com nexo causal capazes de prender a atenção do público. A independência do cinema seria o reinado do arbitrário e do acidental, do ordinário e do casual. Nada de “acontecimentos”. Ou melhor, como disse o próprio André Bazin: “Nada de atores, de história, de mise-en-scène, vale dizer, enfim, na ilusão estética perfeita da realidade: nada de cinema”. Nada? Tudo.
6 comentários
'já que esta não é entrecortada'
ReplyHá controvérsias.
Tá, não há mais.
ReplyCaro Gunnar: você pode (provisoriamente, que seja, o Björstrand é seu) até não concordar, mas depois de achar muito chifre cortado-entre cabeças de cavalo, yo no lo créo en las controversias. Pero qué las hay, hay.
ReplyHerr Editor
ReplyPerdoa Gunnar PT Rapaz muito mortificado por acontecimentos desde 1957 PT Xadrez beira mar nao fez bem PT Ficou obcecado com foices por isso defende cortes e entre-cortes PT Lembranças Sweden PT
Vitor,
ReplyEis que me deparo com você tornado bloguista e com um texto muito bom sobre André Bazin. Este, protetor dos cinéfilos oprimidos, como François Truffaut, morreu prematuramente, coitado, aos 40 anos. Sempre um homem doente a vida toda, mas toda dedicada à reflexão, leitura, e idas e vindas ao cinema. Faleceu pouco antes do lançamento de Os Incompreendidos (Les quatre cent-coups) e não pôde acompanhar a carreira exitosa do pupilo. Fumava muito, apesar de muito doente, um atrás do outro, cinco maços por dia. Creio que o segredo de ter chegado aos 40, pois os médicos, quando ainda aos 20, lhe anunciou passamento breve.
Sim, virei blogueiro, it´s the awful truth...Mas a casa ainda é modesta, carece de mais estrutura, o que me faz um blogueiro quase-anônimo no mercado.
ReplySe Bazin fumava mesmo cinco maços por dia, multiplicados por 20 anos, são 146.000 cigarros. É companhia mais que suficiente para muitas sessões na Cinematheque Française.